"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



quarta-feira, 16 de março de 2011

Corinthians - Itaquera / Palmeiras - Barra Funda

   O chão parcialmente seco avisa que a garoa me esperou como uma armadilha do lado de fora, chegando de um golpe de ar úmido, típico das saídas do metrô, ao final da escada rolante. Poucas pessoas no centro da cidade, parece que a pressa deu-se uma folga, fugindo da habitual imprudência que corre por entre as veias e artérias desse conglomerado desorganizado que chamamos de lar.
   O dia começou como os anteriores, o sono bruscamente interrompido pelas sirenes do despertador, o cheiro da manhã nublada, o gosto da preguiça calma e cafeínada, o som de um silêncio matinal e desmotivante como um sol de outono. Não há trânsito na rua e poucas pessoas resolveram enfrentar a manhã de feriado e ressaca, falta coragem nos corações solitários e abandonados dos paulistanos. Caminho à passos longos, evitando os defeitos destas calçadas.
   Parece-me um tanto quanto confuso o desnível desta cidade, os extremos encontrando-se e separando-se em uma esquina, o abismo entre as classes que dividem as mesmas passagens apertadas. O centro da cidade dos pobres diabos, mendigos, bêbados e viciados sem futuro, mulheres enganadas e assalariados sem folga. Tudo isso em rota de colisão com um universo que não lhes pertence um ou dois quarteirões acima. O imenso contraste de classes dividido entre a parte apertada, suja e cinza para os inquilinos e a parte ampla, limpa e colorida aos proprietários.
   Depois de alguns passos largos o cheiro de tudo se mistura: o suor do povo, o mel das frutas de uma barraca, a fumaça dos poucos carros e dos cigarros, o odor dos bueiros e do café barato e doce demais que foge dos bares, misturando se ao perfume das pessoas, árvores e flores que começam a decorar a paisagem conforme vou mais longe. Em pouco tempo o cenário muda, como se uma nova cidade nascesse através de sobras de uma civilização em ruínas. Passo à passo os defeitos das calçadas vão sumindo, substituídos por ladrilhos de um chão limpo, por onde senhoras passeiam com seus cachorros extraordináriamente bem tratados.
 Em ambos os lados erguem-se torres magnificamente construídas, com grandes janelas, sacadas largas e portões imponentes, como castelos. De um desses prédios à minha frente vejo crianças correndo em direção à rua. Dois meninos pequenos de três anos e alguns meses de diferença, de mãos dadas com uma garotinha no meio, um pouco mais velha que os dois. Os garotos vestem roupas bem feitas e passadas, excessivamente formais para garotos tão jovens. Os cabelos claros meticulosamente penteados por baixo do quipá. A menina desfila um vestido de renda com bordados, tão claro quanto sua pele, meias de seda e um sapatinho envernizado, como uma boneca polonesa de porcelana. Mal sabem como teria sido se tivessem nascido há sete décadas atrás.
   Depois de alguns instantes de liberdade, os três são surpreendidos pelo chamado às suas costas. Descendo os quatro degraus da portaria revela-se uma mulher por dentro de um vestido azul marinho com detalhes e costura branca, os cabelos como fios de ouro bem presos sob um chapéu caro e os dedos, pulsos e o pescoço fino coberto por uma variedade de jóias de diversas qualidades. Uma perfeita Demoiselle, provavelmente saída de um filme francês da metade do século XX. Deixo-me distrair com a felicidade ingénua das crianças correndo com suas pernas curtas e pulando aos sorrisos da mulher encantadora. Certamente destoam das crianças pedintes, descalças e famintas que dorme na porta da estação.
   Em uma fração de segundos, flagro-me em frente a fachada do prédio, do outro lado da rua pode-se ver a clarabóia reluzente no telhado, enchendo aquela caixa de concreto e mármore de luz. Este agora é o mundo que eu ajudo a fazer funcionar, o planeta que ajudo a manter em perfeita rotação e translação. Esses estranhos habitantes são meus grandes amigos e companheiros, pobres diabos como eu, com mais ou menos dinheiro do que eu. Chegando e partindo de extremos, assim como eu.
   Vivo esperando por um dia de folga, contando com muitos dias de trabalho de sol à sol, na expectativa de um milagre descer dos céus só pra mudar um pouco toda essa exatidão. Esperando deixar de cruzar as mesmas fronteiras de um só país, de um só estado. Esperando que a garoa me dê uma trégua na volta, que exista um assento vazio, que a fila não seja tão grande, vivo esperando voltar pra casa.

sábado, 5 de março de 2011

Amigos, amigos...

...Discussões à parte!

   É realmente encantadora toda essa arrogância que temos ao falar sobre o que sabemos ou, ao menos, acreditamos saber. Vocifera-se argumentos disparados como tiros de metralhadora em todas as direções. No entanto, quem está com a razão no final das contas?
   Cresci ouvindo o velho cliché: "Religião, política e futebol não se discute!". Apesar de serem os assuntos mais comentados, (com a exceção de conversas sobre o clima, relacionamentos, trabalho ou sua ausência, etc...) continua em cada esquina, boteco, salas de jantar e estar, o velho desacordo de opiniões. Algumas vezes levando à um ponto de ebulição crítico, fora de controle e/ou insensato.
   Começando pela religião. Nunca me fascinou tal ofício, tampouco dogmas e diretrizes. Abstenho-me desta vocação e isso não significa que eu seja um exímio pecador ou descrente. Acredito na livre interpretação e também em minha fé interna, sem intermédios, sem representantes. Se me perguntassem eu diria que meu Deus não possui religião, não mora em nenhum templo e não fala pelas mãos de homem algum que há milénios escreveu o que dizem ser a 'palavra de Deus'.
   Não volto-me contra os adeptos da religião, respeito o direito de exercê-la, contanto que respeitem o meu de abdicá-la. É óbvio que as relações entre fiéis de diferentes vertentes eram, são e, provavelmente, sempre serão estremecidas. Também é evidente que a coexistência é um sonho bem distante entre cristãos, judeus, budistas, mulçumanos, entre outros.
Outra observação cómica é a visão dos fiéis para com os ditos 'heréges', sendo que a palavra 'infiél' soa pejorativa demais. Os mais liberais te vêem como alguém perdido que precisa ser resgatado e ensinado a seguir o caminho certo, por outro lado, os mais radicais, como bem diz o nome, não toleram os não religiosos, julgando-lhes como condenados, por não partilhar da crença que os demais confiam como único caminho... Tudo bem...

   Adiante com a política. Sei o quanto é monótono os discursos dos partidários e políticos, também nesse caso me abstenho. Não sou da esquerda, da direita, tampouco fico ao centro. Novamente, não acredito que estou sendo representado por alguém ou algo. Deixando de fora disso tudo os frequentes escândalos, coloco o dedo sujo na ferida aberta dos que pouco sabem sobre os estandartes que levantam ao brado heróico. Servindo de panfleto de uma causa que não é própria, não é nova e que muitas vezes 'não compra o que vende'.
   Exausto de toda essa troca de acusações e provocações acabo por ver tudo como o mesmo 'filme azul' que apenas troca atores e diretores para uma 'versão vermelha'. E como sempre, na história dessa raça, os oprimidos acabam virando opressores. Mas a verdade é que sempre haverá uma juventude disposta a se agarrar nas ideologias criadas por tiranos, de ambos os lados, que escreveram, discursaram e ostentaram a 'liberdade' aos quatro ventos, como heróis, mas passando por cima de qualquer resquício de liberdade com a justificativa de que "o ideal é para todos, não de um só. Portanto o que tiver que ser feito pra que tenha liberdade, será feito!". Muito bonito de se ouvir, exceto quando quem houve são os que ficaram a baixo da sola desse sonho de liberdade, quem foi saqueado pelo direito de ser livre, que foi torturado pelos libertadores, quando quem houve são as mulheres estupradas por heróis de tantos lados políticos diferentes. Será mesmo que 'os fins justificam os meios'?
   Termino com a política usando das palavras de um dos últimos grandes pensadores: "Heroísmo no comando, violência sem sentido e toda a detestável idiotice que é chamada de patriotismo - eu odeio tudo isso de coração;" Albert Einstein

   E como falar do futebol? Ah, o futebol... Este sim, não falta ao debate jamais. Resultando em grandes desavenças, rivalidades e em casos mais extremos brigas. Desde o seu início europeu, até então um esporte bretão de nobres, aos jogos nas várzeas brasileiras quando imigrantes importaram o esporte, até os dias de hoje como grande espetáculo que movimenta cifras exorbitantes, é sem dúvida um dos esportes mais emocionantes e o mais dinâmico.
   Algumas vezes, a discussão torna-se mais relevante do que a religião ou política, afinal é muito melhor preocupar-se com seu time do que com a missa ou a economia, digo sem ironia alguma. Responda-me se puder: O que seria deste país se não fosse o futebol? Difícil saber ou argumentar. Paixão nacional, ópio do povo, delírio das multidões de torcedores.
   A maioria de toda e qualquer estupidez esconde um lado sensato e admissível. Por exemplo: Há milhares de anos pessoas se matam por praticarem religiões e rituais diferentes; Não é incomum assistir à políticos se esbofeteando, líderes invadindo países, ditadores tiranos dando um 'jeitinho' de se livrar dos indesejados, apenas por divergências políticas. Seria tão absurda assim a rivalidade e violência por parte dos torcedores?
   Alguns dizem que o futebol anestesia o povo, pra que mantenham-se entretidos e felizes, e eu devo concordar. Concordo com o direito de se anestesiar contra a crueldade, despotismo e opressão imposta à um povo cansado de viver como manda o figurino, de seguir as regras ultrapassadas de barbudos velhos, de sempre abaixar as calças para políticos deliciarem-se com suas boas vidas de representantes populares. Se Deus existe e se a regra é clara, termino com apenas um pedido: Negue-me o pão e o circo, mas não me negue o futebol.