"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Tudo estava calmo...

...Calmo como uma manhã de domingo, com um sol de outono e o vento gelado derrubando as poucas folhas secas que se seguravam nas árvores. O gosto do café se misturando com o gosto do creme dental, aos poucos dominando as papilas gustativas com sua amargura. Um fio de fumaça azulada sobe por entre os dedos que seguram o cigarro, enquanto expulso a núvem de tabaco e alcatrão dos pulmões.
Ouço os passos dela, distantes, andando na ponta dos pés, seguidos pela sinfonia de violinos que se fazem ouvir quando ela passa pelas calçadas dessa cidade. Já posso sentir o cheiro dos cabelos e da pele recém lavada. Sinto o cheiro da sua respiração, do seu vestido, o cheiro da sua presença.
De repente, posso tocá-la com as costas das mãos. Posso tocar em seu rosto com a ponta dos dedos e vê-los deslizarem, devagar, por entre os olhos fechados e a pequena curva do nariz até chegar à boca sem batom e ao queixo delicado.
Posso sentir o gosto de álcool de seu perfume. Sinto o gosto da inocência perigosa e esperta que ela tem. Pareço poder sentir o gosto desse instante, rolando entre a língua, explodindo como fogos de artifício no céu da minha boca. Sinto o gosto da maçã de seu rosto quando à mordo, o gosto doce de tê-la por perto, sinto o gosto de imaginar qual deve ser seu gosto.
Então, posso vê-la cruzando a esquina, atravessando a rua e destacando-se no meio desse universo cinza, como a garotinha de vestido vermelho de A Lista de Schindler, parecendo não se importar ou não perceber o caos ao redor, talvez por conta do som dos violinos que tocam de acordo com a órbita de seus quadris. Posso vê-la, chegando sob um céu de Monet, de um modo misterioso e imprevisível, como um acidente prestes a acontecer.
Posso sentir a sensação de me perder nas cores de seus olhos, perder a direção em suas curvas, perder o juízo, perder o fôlego. Posso sentir a sensação de me jogar, em queda livre, neste abismo que ela é. Um abismo de um metro e sessenta e seis. É isso o que ela é: um abismo, uma fronteira, uma armadilha com seus lábios de arame farpado.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Embriagues de sobriedade

Então, aprendemos a andar juntos, através de mudanças de comportamentos e assuntos. Sob uma tempestade de inveja e insultos, ensaiamos mentiras, algumas vezes inacreditáveis, outras vezes bons argumentos.

Depois aprendemos a buscar e fugir da luta, admirar ou impedir a força bruta, ignorando, vez ou outra as afrontas e insolências de qualquer filho da puta. Nos impregnamos dessa covardia, como se fosse a unica conduta.

Talvez, tenhamos sido enganados. Quem sabe abençoados? Podemos ter que admitir que agora somos arrogantes e mal acostumados, mas isso não passa tão perto de um pecado, seriamos absolvidos ou abandonados.

É claro, chegaremos até onde for possível, nos habituamos ao que é aceitável e nos torturaremos com o que for inesquecível, pois nossa sede é insaciável e nossa cobiça é desprezível. É tudo tão incomensurável, que o defino como incrível.

Por fim, só resta o suplício. A emoção do ócio colidindo-se contra os muros deste vício. Toda a certeza do final vem do receio de um início. Quando as luzes se apagam eu me calo, pois entre entre o som e a palavra eu prefiro o silêncio.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

De volta...

Gosto da estrada, da emoção da partida, das paradas no acostamento, dos desenhos e defeitos no vidro que me impedem a vista completa das cidades e vilas que passam. Gosto da insegurança, da possibilidade e da alta probabilidade de algo acabar dando errado.
Gosto do barulho do motor, a pressão da frenagem e até mesmo do cinto de segurança. Gosto quando as luzes se apagam do lado de dentro, fazendo da janela um grande quadro, que se move e muda cada vez mais a cada quilometro, como um filme, seguindo uma sequência, um roteiro que talvez nós ja saibamos onde vai chegar, mas que quando visto novamente se parece parcialmente novo e tão surpreendente como da primeira vez. 
Se por acaso me sento na poltrona do corredor, me estico um pouco pra conseguir ver através da janela e me espremo o bastante para os outros passarem pela estreita trilha que corta o automóvel. O conselho é quase sempre o mesmo: "escolha sempre um lugar no lado do motorista". Conselho este que sempre pensei ser um absurdo, sendo que, se por um descuido da sorte um acidente acontecer, não seria muito lógico tentar controlá-lo, mesmo porque nunca se sabe de que lado ele acontecerá, se é que existe um lado especial pra acidentes acontecerem.
Gosto do ar condicionado, secando e irritando a garganta e as narinas. Gosto das duas lâmpadas na parte de baixo do bagageiro superior, muito úteis nas horas de leitura e das cortinas raramente usadas nas raras horas de sono. Gosto das casas na beira da estrada, de imaginar como deve ser viver ali, nas artérias da terra. E, é claro, tenho todo um carinho especial pelas pontes, das mais simples e perigosas até as mais bonitas e modernas. Gosto muito também dos túneis, do barulho abafado, da luz alaranjada e do alívio ao ver a luz do dia ou o breu da noite no final. Gosto da escuridão sendo interrompida, por segundos, pelas luzes de qualquer posto de combustível saturado de caminhões estacionados perto de restaurantes, lachonetes ou motéis próximos.
Gosto das curvas, das retas, das descidas e subidas. Gosto de viajar de tarde, de manhã, mas prefiro a noite. Gosto de viajar sozinho, com alguém ou com muitos. Gosto de reclinar o banco e olhar pra fora. Olhar pra fora de mim, do meu mundo, dos meus hábitos e rotinas. Gosto de ver quem há muito não vejo e conhecer pessoas das quais nunca imaginei a existência, ir a lugares novos ou até mesmo aos antigos dos quais senti saudade. Gosto de partir, mas gosto mesmo é de voltar. Pra casa. Gosto mesmo é do abraço de boas vindas e do beijo de saudade. Gosto de saber o que aconteceu enquanto eu estava fora e imaginar o que vai acontecer agora que voltei. Gosto do cheiro daqui e das cores que tudo tem aqui. Gosto do gosto disso tudo.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Graça

"Sim, é claro, o amor é uma graça. Nos faz tão mal e tão bem, mais do que qualquer outra coisa nos faça. Nas músicas, nas artes ou em qualquer papel que se amassa. Amor. Luminoso e irresistível como uma lâmpada em meio às traças. O amor que tu procuras e em seguida te afastas, tu foges pelas ruas, desvias dos defeitos das calçadas, por entre prédios, parques e praças. O amor, dono da vontade da entrega e o prazer das ameaças. Aquilo que você não gosta, mas que se abraça. Aquilo que você tem medo, mas sempre vai à caça. Aquilo que vem e vai, mas nunca passa."

André Rossetto

"Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
te amo directamente sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira..."

Pablo Neruda

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Há pouco tempo atrás...

...o assunto era o medo, de perder, de ganhar, de tentar e falhar ou desistir e se arrepender. Hoje quero falar sobre o que deveriamos fazer ou deveriamos ter feito. De tudo que nos traz medo, todo o cuidado e o que repelimos, a única parte de que não deveriamos nos separar ou esquecer é de como era amar, de como conseguir isso de novo, de como criar isso a partir de um futuro sem garantias.
As vezes penso que nosso único erro é se defender demais, se blindar de tudo, não ter coragem de sentir o que sempre se quis. Falo porque sei, não porque me disseram, mas sim por isso ter acontecido comigo também. Todo esse medo, do futuro instável, do destino imprevisível, de não saber se devemos dar o próximo passo ou não. Eu já passei por isso e perdi muito por isso.
Admiro o senso de proteção natural que envolve algumas pessoas, mas quando paro pra pensar em segurança e estabilidade, me lembro de repente de quando eu era feliz, bem feliz, e corria pra longe de toda e qualquer garantia de que tudo seria certo e feito sob medida para as minhas necessidades e realizações.
Uma época em que tudo se parecia com uma queda livre, mas que eu não me preocupava se o pára-quedas abriria ou não, apenas admirava o momento, com a certeza de que ele não voltaria por mais que outros saltos viessem em seguida, mas também com a certeza de que outros saltos seriam tão bons quanto os anteriores e que se um dia eu chegasse ao chão antes de o pára-quedas se abrir teria, mesmo assim,  valido a pena os momentos de dúvida e incerteza que tive, mas nunca os momentos de hesito.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Como uma pedra...

...sim, ela sempre foi como uma pedra, no leito de um rio, no meio da estrada, talvez até estilhaçando alguma vidraça. Tão sólida, tão bruta no explendor de suas poucas cores. Foi como uma rocha, a Rolling Stone, despencando de qualquer abismo, deixando pequenos pedaços de si por onde esbarrava, deixando marcas por onde passava e levando consigo fragmentos do que atingia.
Ela sempre foi como uma pedra, preciosa ou não, mas sempre uma pedra que ainda não foi lapidada e talvez nunca será. Aquela pedra no leito de um rio, que tudo suporta, que às vezes é carregada pela correnteza, mas logo encontra outro lugar para se fixar.
A pedra que todos admiraram de longe e acabaram se despedaçando contra ela por chegarem perto demais. A pedra no meio do caminho, que alguns se desviaram temendo os riscos. A pedra que alguns chutaram, desprezando seu hipotético valor. A pedra em que alguns tropeçaram, não percebendo seus perigos ou não confiando-lhe a definição de obstáculo.
Sempre como uma pedra, estilhaçando vidraças. Sendo lançada contra algo e, consequentemente, sendo atingida de volta, incontáveis vezes, como se fosse feita pra isso. Como se essa fosse sua importância, seu sinônimo. A pedra fundamental, a pedra na qual alguém sentou-se para descansar e admirar a vista. A pedra que alguém colocou em um anel, a pedra que todos ignoraram e acabaram esmagados por seu peso, a qual todos julgaram-se mais sólidos. A pedra que suporta, que tudo aguenta e tudo sustenta, porque foi feita pra isso. Suportar a pressão e manter-se em seu lugar.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Logo eu...

...Que sempre me achei tão esperto, tão inovador, versátil e a frente do meu tempo. Logo eu, que sempre me achei tão capaz e obstinado, que sempre achei saber o que precisava saber, transformando essa arrogância, essa prepotencia, em um lifestyle absoluto. Como se tivesse certeza do que eu queria ser, do que iria me tornar e do que a vida me reservaria.
Logo eu, que sempre pareci tão seguro de mim mesmo, tão confiante a respeito do suposto talento que eu tenho, tão faminto por novos horizontes e novas possibilidades. Logo eu que tratei e destratei, a tudo e a todos, do modo que melhor me convinha. Com tanta pose, tantos discursos bonitos, tantas opiniões. Logo eu que escrevia músicas tão boas pra mim mesmo, desenhei tão bem sem nunca ter estudado, argumentava tão bem sobre qual fosse o assunto na mesa.
Eu que sempre me achei esperto o suficiente para me destacar, sem precisar passar a perna em ninguém. Eu que sempre acreditei no dom que imaginava ter, acreditei na tendencia a ser o centro de conversas sobre pessoas sensatas e inteligentes. Eu mesmo, que acreditava, duvidei, acusei e apontei o dedo, voltei a acreditar. Eu que voltei atrás e me arrependi, entrei em contradição e menti tantas vezes pra sustentar o castelo de aparencias e continuar atuando nesse eterno teatro de marionetes, criando o roteiro que mais impressionasse, com as melhores caras e bocas que minhas qualidades cenicas permitiam.
Logo eu, tão admirado, ou nem tanto assim, mas pelo menos percebido. Logo eu...
...Me vi tão atrasado, contente com o avanço dos outros, mas tão decepcionado. Não me vi invejando o sucesso de ninguém ou mal dizendo suas conquistas e realizações, mas sim cobrando alguma atitude genuina, que realmente partisse de mim, que me trouxesse algo, material, espiritual, substancial e não mais artificial. Pois cansei das aparencias, de como ter que parecer ou agir. Cansei dessa cartilha, desse manual que eu mesmo ajudei a escrever e definir como plano de voo.
É engraçado, pensar em descer da pratileira de troféis, descer um degrau dessa escada feita de ego. É comico sentir-se bem sozinho, sem ninguém que consiga me atrasar e que eu consiga decepcionar. É bom respirar o mesmo ar, seguir o senso comum e escapar dos meus próprios moldes, feitos sob medida para o tamanho da minha fantasia e imaginação. É bom se sentir tão pouco e nem ser tão percebido, não ter o nome pronunciado e nem ser tão importante pra alguém. É bom poder descansar e pensar algo a respeito de mim mesmo, poder me criticar e me elogiar. Conseguir ficar mais comigo, do que maquiar a realidade ficando com alguém, como uma muleta, uma ponte que imaginamos ser sustentada por outra pessoa. É bom não ter o mundo seguro pelas mãos de Atlas, é bom não ter que lutar contra o sol pelo centro do universo.