"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Arame farpado.

   De cima da ponta dos pés, ela passa deixando um pedaço seu no ar. Rodopiando pela atmosfera fica o seu cheiro, invadindo o lugar. "É só sabonete!", ela diz. Em segundos, tudo a ela pertence. No instante de um momento, na rapidez de um piscar de olhos, ela me domina inteiro.
   Eu assisto ao seu desfile de más intenções e pernas trançadas, no seu caminhar extraordinariamente desregulado. Permaneço atônito, rendido pela observação. Olho-a como se pudesse rompê-la, como se pudesse despi-la. Vejo por trás de sua pele branca e de sua carne rosada, suas veias finas e azuladas. Vejo os seus ossos leves, balançando com graça. Ela corre pela sala.
   Nunca diz na hora. Faz mistério até para dar bom-dia. Se impregna de perfume, charme e dissimulação. Recluso-me. Sou atraído pela luz dos seus olhos e morro grudado em seu batom. Morro batendo as asas, tentando escapar de seus dentes. Eis que ela aparece com sua agulha e me fura o braço e me anestesia. Me põe deitado em seu colo e lê Neruda, passando os dedos pelos meus cabelos. E sua língua dá sentido às palavras, rolando-as como a espuma do mar uruguaio. "Eu sou criança, não sei ver. Apenas posso enxergar.", ela justifica. Ela tem o gosto da novidade. Tenta-me esconder seus problemas com a bebida e com falsos sentimentos. Absorve seus remorsos em grandes goles de gin tônica e muda de olhos, em três ou quatro piscadas, põe-se a brilhar como se pudesse abrir as cortinas de dentro da cabeça e deixar que a luz do sol entre e lhe bronzeie os pensamentos. Ela não deve ser amada. Não merece amor. Ela é só sabonete e chá, durante a manhã. Sono e café durante a tarde. Sexo e álcool durante toda a noite.
   Tem dentes de arame farpado, seguram e rasgam o que alcançam. Morde com força, rindo como uma menina. Parece ter nascido assim, com os dentes retos e afiados. Ela gira, descalça, tirando a roupa e dançando. Abre garrafas, acende cigarros e troca discos. E quando não satisfeita, abre três livros ao mesmo tempo e joga suas páginas no liquidificador. Lendo simultaneamente o que lhe aguça a percepção. Ela é a luz entrando pelo buraco de agulha da minha retina, de minha câmara fotográfica.
   Ela chora quando se lembra de casa. Ela desliga o telefone e acende um baseado. Se debruça na janela e tenta olhar o mais distante que consegue, mas sua visão é fraca. Anda por aí com uma nuvem negra em cima da cabeça, soltando relâmpagos e trovões. Dobra esquinas deixando fogo no chão, partindo corações, pisando em poças d'água. E todos lhe querem algo. Querem ao menos serem notados. Mas ela não os vê, é criança, só pode enxergar. Os pobres se escondem atrás de suas notas e de seus carros, e por isso ela não se interessa. É uma devoradora de ideias e paisagens. 
   Tento lhe beijar, mas ela desvia. Aprendeu isso comigo. Sem dizer nada, encosta a sua boca na minha e fecha os olhos. Não me beija. Permanece imóvel, respirando. Abre os olhos, sorri e me diz que o mundo está acabando. Que precisamos fazer um filho, que precisamos ir para o Uruguai. Que precisamos nos perder de manhã em algum café de Paris. Precisamos beber rum e fumar charutos em Havana. "O mundo está acabando, não se esqueça disso. Tudo vai explodir lá fora e poderemos estar em qualquer lugar do mundo, transando em um quarto de hotel quando tudo acabar."
   Ela me pede para abrir a porta e então sai. Olhar para trás não é uma opção. Tem mania de parecer com as personagens dos filmes e livros que gosta. Se fosse possível entendê-la de uma forma simples, ela simplesmente se desanimava e cruzava os braços. E de repente aparecia com um sorriso novo, por cima de sua genuína falsidade. Ela volta do mesmo jeito que vai. Dessa vez é ela que sobe em mim, sentada em meu colo, cantando Billie Holiday. Envenenando minha consciência, entorpecendo-me os sentidos. Viciando cada célula de meu corpo, aprisionando-as em suas mãos, entre os seus seios. Ela me bebe quente. A mim, ela bebe em pequenos goles. Deixando-me evaporar. Deixando-me acabar junto com o mundo. Como se pudesse me sugar, ela me envelhece e se torna cada vez mais nova e irresponsável. Com amor, ela fecha meus olhos com a ponta dos dedos e sussurra em meu ouvido. "Eu não o amo. Apenas lhe quero bem.". Por acaso, lhe encaro de frente, vejo seus cabelos de serpente e me torno pedra. Afundo lentamente e me afogo no meu copo meio vazio enquanto ela espera pelo final da noite, pelo final do fogo. Enquanto nós esperamos pelo final do mundo.

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