"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



terça-feira, 20 de novembro de 2012

Desnecessário.


 Você não precisa de alguém que te complete. Não depende de alguém que te agrade. Não precisa de alguém que te faça feliz. Não depende de alguém que crie e te faça criar expectativas. Uma pessoa para andar do teu lado já basta! Não precisa de todo esse romance, não precisa de toda essa palhaçada comercial. Você não precisa dar ou receber coisas caras, você não depende da atenção de ninguém. 

Você é melhor assim. Sem precisar confiar tanto, sem precisar se entregar tão depressa. Você não precisa mostrar para todo mundo quem está com você, muito menos depende de alguma aprovação. Você tem o direito de ser o que é hoje e ainda mais de ser o que quiser amanhã, e definitivamente não precisa de alguém que aceite isso ou não. Não precisa dessa pressão.
  
Se mesmo assim você quer ir atrás de tudo isso, tudo bem. Você também não precisa me dar ouvidos. Posso mudar de opinião daqui a pouco, posso voltar atrás, posso tentar de novo. Você não precisa beber o que eu bebo, ouvir as músicas que eu ouço, gostar das pessoas que eu gosto e nem ler os livros que eu leio. Tudo que você precisa é continuar assim. Sendo da maneira que é. Você só precisa dar uma volta, sem se preocupar com as satisfações, com as obrigações. Você não precisa de um dono.

domingo, 21 de outubro de 2012

volto logo...

 Se amanhã tudo mudar, tudo bem. Há de ter um caminho em frente. Algum sinal, algum atalho. Amanhã há de ter alguém. Uma noite após a outra, elas entram, brincam e saem, levando o que puderem, deixando o que perderem. 

 Amanhã teremos uma nova chance, por hoje existe apenas jazz. Amanhã vamos mudar. Mudar de casa, de hábito, de roupa, de ideia. Mais uma oportunidade para fazer certo ou foder com tudo. Pensamos nisso amanhã.

 Agora, beba e esqueça. Não há o que possa ser feito nessa noite. Estamos sozinhos aqui. As portas não se abrem mais a essa hora. Isso não é necessário. Espere o dia chegar e clarear a vida. Quando as cores aparecerem, tudo ficará mais fácil. Agora a sombra lá fora está nos esperando para mastigar nossos sonhos. Não, a vida não é ruim. Algumas pessoas são. 

 Para que se preocupar, de cima do salto alto, perdendo sua pose? Se amanhã eu tiver que ir embora, não se preocupe. Tudo vai dar certo, estamos totalmente no controle do acidente que são nossas vidas. Já nos acostumamos com as coisas que não dão certo, não são mais surpresas. Se algo não deu certo, de alguma forma já era esperado, então acaba dando certo. Está cansada? E como foi o seu dia? Teve chuva e neblina de novo? 

 Qualquer dia desses teremos que fugir pelo esgoto. Como todo mundo faz quando tudo começa a cair. Nesse dia, andaremos de mãos dadas. Correndo de tudo o que deixamos. Mas hoje não! Estou ficando velho e não aguento mais tanta correria. Espere por esse dia. Enquanto isso, prepara um café. Vou ir comprar um maço de cigarro, volto logo...

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Arame farpado.

   De cima da ponta dos pés, ela passa deixando um pedaço seu no ar. Rodopiando pela atmosfera fica o seu cheiro, invadindo o lugar. "É só sabonete!", ela diz. Em segundos, tudo a ela pertence. No instante de um momento, na rapidez de um piscar de olhos, ela me domina inteiro.
   Eu assisto ao seu desfile de más intenções e pernas trançadas, no seu caminhar extraordinariamente desregulado. Permaneço atônito, rendido pela observação. Olho-a como se pudesse rompê-la, como se pudesse despi-la. Vejo por trás de sua pele branca e de sua carne rosada, suas veias finas e azuladas. Vejo os seus ossos leves, balançando com graça. Ela corre pela sala.
   Nunca diz na hora. Faz mistério até para dar bom-dia. Se impregna de perfume, charme e dissimulação. Recluso-me. Sou atraído pela luz dos seus olhos e morro grudado em seu batom. Morro batendo as asas, tentando escapar de seus dentes. Eis que ela aparece com sua agulha e me fura o braço e me anestesia. Me põe deitado em seu colo e lê Neruda, passando os dedos pelos meus cabelos. E sua língua dá sentido às palavras, rolando-as como a espuma do mar uruguaio. "Eu sou criança, não sei ver. Apenas posso enxergar.", ela justifica. Ela tem o gosto da novidade. Tenta-me esconder seus problemas com a bebida e com falsos sentimentos. Absorve seus remorsos em grandes goles de gin tônica e muda de olhos, em três ou quatro piscadas, põe-se a brilhar como se pudesse abrir as cortinas de dentro da cabeça e deixar que a luz do sol entre e lhe bronzeie os pensamentos. Ela não deve ser amada. Não merece amor. Ela é só sabonete e chá, durante a manhã. Sono e café durante a tarde. Sexo e álcool durante toda a noite.
   Tem dentes de arame farpado, seguram e rasgam o que alcançam. Morde com força, rindo como uma menina. Parece ter nascido assim, com os dentes retos e afiados. Ela gira, descalça, tirando a roupa e dançando. Abre garrafas, acende cigarros e troca discos. E quando não satisfeita, abre três livros ao mesmo tempo e joga suas páginas no liquidificador. Lendo simultaneamente o que lhe aguça a percepção. Ela é a luz entrando pelo buraco de agulha da minha retina, de minha câmara fotográfica.
   Ela chora quando se lembra de casa. Ela desliga o telefone e acende um baseado. Se debruça na janela e tenta olhar o mais distante que consegue, mas sua visão é fraca. Anda por aí com uma nuvem negra em cima da cabeça, soltando relâmpagos e trovões. Dobra esquinas deixando fogo no chão, partindo corações, pisando em poças d'água. E todos lhe querem algo. Querem ao menos serem notados. Mas ela não os vê, é criança, só pode enxergar. Os pobres se escondem atrás de suas notas e de seus carros, e por isso ela não se interessa. É uma devoradora de ideias e paisagens. 
   Tento lhe beijar, mas ela desvia. Aprendeu isso comigo. Sem dizer nada, encosta a sua boca na minha e fecha os olhos. Não me beija. Permanece imóvel, respirando. Abre os olhos, sorri e me diz que o mundo está acabando. Que precisamos fazer um filho, que precisamos ir para o Uruguai. Que precisamos nos perder de manhã em algum café de Paris. Precisamos beber rum e fumar charutos em Havana. "O mundo está acabando, não se esqueça disso. Tudo vai explodir lá fora e poderemos estar em qualquer lugar do mundo, transando em um quarto de hotel quando tudo acabar."
   Ela me pede para abrir a porta e então sai. Olhar para trás não é uma opção. Tem mania de parecer com as personagens dos filmes e livros que gosta. Se fosse possível entendê-la de uma forma simples, ela simplesmente se desanimava e cruzava os braços. E de repente aparecia com um sorriso novo, por cima de sua genuína falsidade. Ela volta do mesmo jeito que vai. Dessa vez é ela que sobe em mim, sentada em meu colo, cantando Billie Holiday. Envenenando minha consciência, entorpecendo-me os sentidos. Viciando cada célula de meu corpo, aprisionando-as em suas mãos, entre os seus seios. Ela me bebe quente. A mim, ela bebe em pequenos goles. Deixando-me evaporar. Deixando-me acabar junto com o mundo. Como se pudesse me sugar, ela me envelhece e se torna cada vez mais nova e irresponsável. Com amor, ela fecha meus olhos com a ponta dos dedos e sussurra em meu ouvido. "Eu não o amo. Apenas lhe quero bem.". Por acaso, lhe encaro de frente, vejo seus cabelos de serpente e me torno pedra. Afundo lentamente e me afogo no meu copo meio vazio enquanto ela espera pelo final da noite, pelo final do fogo. Enquanto nós esperamos pelo final do mundo.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Solitária.

   Deram-me uma moeda. Foi tudo o que tive durante vinte e cinco dias. Joguei-a pra cima e fiquei tateando ao redor. Girando-a entre os dedos. Os meus queridos cinco centavos. Deitei-me no chão e a coloquei nos olhos, como uma antiga tradição fúnebre, embora o barqueiro cobrasse duas moedas pelo trajeto e eu não estivesse propriamente morto. Eu estava morrendo, sem dúvida. Cada célula do meu corpo ia se apagando, em contagem regressiva.
   Toda luz que me entrava aos olhos vinha dos buracos na porta de ferro, somente de dia. De noite não havia nada. Nem mesmo as alucinações que as trevas proporcionam. Havia apenas a escuridão e o gosto da umidade podre das paredes, me sufocando. Morrer não era uma má ideia, mas eu não tive modos, não tive forças, nem mesmo para me tirar algo já frágil, debilitado e torturado por pessoas que nem mesmo conhecia antes de chegar lá.
   Lembravam de mim de tempos em tempos, algo parecido com uma mistura de água, cimento e sal era me dada. Depois de um tempo, acostumei-me com o cheiro disso. Com o cheiro do metal enferrujado. O cheiro dos restos no chão. O cheiro ruim que vinha de mim, dos meus poros, das minhas necessidades.
   Já não lembrava do meu rosto. Mapeava-o com as pontas dos dedos para tentar imaginar de um modo táctil minhas feições. Diferente dos outros eu não falei sozinho, permaneci calado em exílio, contemplando o som da minha respiração empoeirada. Se falei dormindo, não posso dizer. Era possível ouvir o som dos tijolos rangendo sobre o cimento, a água escorrendo como vela derretida pelos quatro cantos. Tive medo de ser esmagado pela pressão, afogado pelas lembranças.
   É incrível o que pode acontecer nas faculdades de uma pessoa quando lhe é privada a noção do tempo. Desde que fui jogado nessa cova, todo este tempo de confinamento, comicamente, parece ter durado apenas um dia. Eles não sabem que prendendo as pessoas dessa forma, acabam anestesiando tudo. Ali a vida parecia completa e tudo o que eu precisava era do oxigênio que entrava pelos vãos da porta e de meus queridos cinco centavos.
   Alguém entrou. Nenhuma palavra. Apenas o rangido da porta e o som do solado de sapato. Um fantasma. Ele trazia uma cadeira, colocou-a de frente para mim e sentou-se. Podia apenas ver seu contorno, como neon dos cinemas da velha São João. Deitado nos fundos da cela, apenas esperei que o fantasma desse início ao procedimento. Sabia como as coisas funcionavam ali. Todo inferno tem suas regras.

-Onde eles estão?

   Rompendo o silêncio com uma voz calma, sem expressão, ele pergunta e espera. Retira uma lanterna pequena no bolso do paletó e acende-a. A bola de luz branca projeta-se no teto que parecia ser feito de bolor. Foi a primeira luz que vi depois de dias. Fiquei hipnotizado por alguns segundos, como um cego que acordasse em um belo dia podendo enxergar. Me apaixonei por aquela faixa branca que explodia. Quis ir ao seu encontro como um inseto.

-Podemos ficar aqui a noite inteira. Assim como você eu também não tenho para onde ir. Não sinta-se tão miserável, afinal, eu também sou um preso daqui. A única coisa com que você deve se preocupar é o fato de eu não ser um prisioneiro confiável para dividir uma cela.

   O raio azulado vai descendo lentamente do teto em minha direção, até me atingir o rosto como um trem de carga. Senti minha alma queimando com o clarão de mil bombas atômicas. Tive certeza de que nunca mais enxergaria, tive certeza de que meus olhos derreteriam, me deixando com dois vazios a mais no rosto. Não tive forças para gritar, o ar não conseguia entrar ou sair de mim. Tudo o que existia era a dor branca e o riso de fantasma.

-Você sabia que o diretor recebeu uma boa verba? E esses estudantes filhos da puta têm coragem de contestar o comprometimento que temos com a nação. Mas esses são uns bostinhas, marxistas de merda. Você é diferente, realmente um pensador! Um homem letrado não devia ser tratado assim, sei que posso lhe ser muito útil se aceitar cooperar e responder. Tenho grande influência nas decisões.

   Silêncio. Mesmo que eu me entregasse e quisesse falar, não poderia, havia desaprendido como isso era possível. Não se tratava de idealismo. Meu silêncio era o único pedaço de dignidade em que consegui me agarrar para não afundar no mar de esquecimento que eram esses corredores. Podiam arrancar-me dedos, pedaços da orelha, dentes. Mas não podiam me cortar a verdade de dentro de meu estômago. Eu a havia engolido, juntando saliva e sangue na boca por uma noite inteira.
   A verba recebida pelo diretor, foi usada até mesmo para a manutenção das ferramentas, ou seja, novos alicates, martelos, serrotes, prensas e fios. Pareciam brinquedos nas mãos dessa sombra que estava sentada na minha frente, examinando-me, oculto por trás da irradiação de sua lanterna. Ele se levantou e em um só movimento levantou a cadeira acima da cabeça e a arremessou para o chão, na direção onde eu estava deitado, hipnotizado.
   Apenas pude sentir o impacto, nenhuma dor ou som. Apenas o impacto e o calor descendo do topo da cabeça, por cima dos olhos, pelo canto da boca até o pescoço. O calor com gosto de ferro.

-Eles me olham e acham que é muito fácil para mim. Não sabem o quanto é trabalhoso estudar as milagrosas anatomias humanas, para saber até que ponto elas aguentam seus calvários. Eles não sabem como um homem sem nada como você pode dificultar o meu serviço, não sabem que estamos, nós dois, trabalhando em conjunto aqui.

   O que me rendeu risadas durante algum tempo foi perceber que o mesmo Estado que nós condenava como mentirosos, nos torturava para saber a verdade. A guerra parecia existir apenas do lado de fora dos muros. Aqui dentro nós esperávamos para morrer, e esperávamos que isso fosse rápido, mas ao mesmo tempo não queria ser morto com uma bala só, ajoelhado no pátio, sendo deixado por dois ou três dias como um exemplo para não ser seguido.
   Com um alicate ele triturava as minhas falanges. Torcia e quebrava, como se meus ossos fossem feitos de giz e minha carne não passasse de um resto de matéria em decomposição.

-Nomes e lugares... É apenas o que quero, trago-lhe um bom pedaço de carne, até mesmo posso cortá-la em pedaços pequenos, já que sua mão esquerda ficará um tempo de férias. O que acha? Ainda lembra do gosto que a carne tem? Me diga o que quer e eu lhe trago. Podemos entrar em um acordo bem mais civilizado do que esse. Ninguém precisa sentir dor.

   Podia sentir sua respiração, estapeando meu rosto com o cheiro de cigarro e conhaque. Podia sentir o cheiro de sua loção pós barba. Podia ouvir seu maxilar estalando, seus olhos piscando. Era possível ouvir o sangue congelando em suas veias, paralisando seus batimentos cardíacos. Ele pôs-se de pé, ajeitando as mangas da camisa e limpando as mãos sujas de sangue em um pedaço de pano. Respirava como um cavalo de corrida antes da largada. Eu pensei em minha casa. Pensei no cheiro do café e das roupas de minha mãe. Pensei nas madrugadas sentado na escada, fumando e olhando as estrelas. Pensei em tudo que essa guerra já havia me roubado por todos esses anos.

-Você é um porra de um maluco! Todo mijado e fodido por causa de uma cambada de cabeludo que não toma banho. Faz ideia de quantos de seus amiguinhos já passaram pelas minhas mãos? Faz idéia do que fiz a cada um deles? Todos falaram, gritaram, choraram. Mas você é um anjo. O próprio messias imundo, servindo de mártir para uma causa perdida. Nenhum de vocês será lembrado!
                                                  -

   Entregaram-me um papel, uma muda de roupas sujas e abriram as portas. Dezenove anos depois, me mandaram para a rua. Expulsaram-me das minha grades de metal enferrujado e disseram-me algo sobre tempos de paz, sobre transição. Me jogaram para a prisão que é a vida do lado de fora, direto para a ilusão das avenidas da cidade. Das grades invisíveis que permanecem nos rodeando. Caminhei sem reconhecer os caminhos, sem reconhecer a paisagem. Vaguei perdido em minha terra natal, sem conhecer os rostos, as roupas, os carros. Já não conhecia mais a vida. Jamais encontrei alguém que havia conhecido em minha vida anterior. Tornei-me mais um sem-nome de esquina sem história para ser contada. Confinei-me nessa prisão externa. Minha memória foi falhando com o tempo. Não comia, não pedia dinheiro. Eu apenas existia. Acordava em dias perdidos, em ruas estranhas, sendo expulso, chutado da minha própria cela. Tornei-me meu próprio carcereiro, meu próprio diretor e, absolutamente, meu próprio torturador.
   Tudo o que puderam me tirar, foi a ilusão de liberdade que tinha. Livres não somos, nunca. Esqueci-me de como era minha voz, só conhecia o som da minha tosse, dos meus pés e dos latidos de um cachorro vira lata que não me largava. Já haviam se passado dois anos desde que fui solto e eu continuava vestindo o mesmo terno velho que me entregaram. Tudo o que tinha no bolso eram os meus queridos cinco centavos. Deitado na Rua Sete de Abril, ignorado pela multidão de rostos insignificantes que passavam, eu o vi andar. Soube no instante que era ele. O cabelo penteado para trás, bem mais velho do que devia parecer na época. Vestido como um senhor semi-respeitável de meia idade, no rosto o bigode desenhado de militar. Soube que era ele. Lembrava do som dos seus pés. Lembrava da sua respiração de cavalo de corrida. Pude sentir o cheiro de sua loção pós barba. Ele não me notou, nem mesmo minha mão completamente deformada chamou sua atenção, simplesmente não me viu. Levantei-me, observei ele dobrando a esquina com a Ipiranga e voltei a andar. Lá se foi o meu fantasma, lá fui eu. Nunca mais voltei. Nunca mais.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Sessenta centavos

Senti vontade de correr, mas me cansei da idéia. Tudo o que tenho no estômago são alguns goles de café. O amargo da boca parece não ter fim, inundando as papilas gustativas sem deixar espaço para nada de mais doce. A verdade é que não suporto mais. Meus pés doem. 

O céu cinza como o mármore de uma sepultura quase permite que o sol se mostre vivo dentro de sua cova, envolvendo as ruas em um mormaço de panela de pressão. Limpo o suor da testa com a manga da minha camisa, acendo outro cigarro e continuo sentado, esperando o semáforo fechar e abrir. Queria gritar, como se isso pudesse desfazer os nós, como se pudesse vomitar minha raiva cafeinada que vem de minhas entranhas. Eu quis pintar o céu da cor do sangue.

A fumaça que me violava o peito parecia uma nuvem ácida, corroendo meus brônquios e descarregando ira na corrente sanguínea. Pode ser que eu tenha duas ou três pedras dentro do sapato, mas elas não me incomodam mais. A manhã se arrasta, cortada por buzinas, conversas e o barulho de aço das rodas do trem oscilando nos trilhos. Por milhares de vezes, me flagrei olhando para os extintores e saídas de emergências, esperando por um descarrilhamento, esperando por um acidente. 

Logo cedo, a fúria me vem à tona. Ela é um certo tipo de gordura que a bílis não é capaz de emulsificar. Ela me faz ter raiva dos outros e, consequentemente, de mim próprio. A fúria me impele a imaginar a vida fora deste lugar quadrado, colorido em tons pastéis e depressivos, circundado por cercas brancas, em uma frustrada tentativa de transformar essa vida cansativa e patética em uma falsa vida calma de campo. É tudo mentira. Eles tentam nos enganar o tempo todo. Sempre que ficamos em dúvida, alguém aparece com um band-aid, uma explicação ou uma solução ridícula. Algo que preencha as rupturas de nossos botes salva-vidas. Pois que deixem o meu afundar, dessa vez.

Não tenho o mínimo interesse em aperfeiçoar o modo como penso. Não tenho a intenção de caber nos parâmetros. Gosto de estar sozinho, é quando realmente posso pensar na minha maneira insignificante de ser. Eles me olham e perguntam o tempo todo "Porque fizeste isso? Porquê?", e tudo que posso lhes devolver é o silêncio de quem não sabe e não gosta de se explicar. Então sinto vontade de agredir alguém, com toda a força que tenho nas mãos. Sinto vontade de machucar uma pessoa qualquer, arrancando sua sinceridade mais pura e depois lhe ser grato e pedir perdão. Sinto vontade de me ver pelo meu lado de fora, caindo de lugares altos. Queria poder me ver, do alto de alguma janela, caminhando pelo outro lado da rua, como se pudesse não ser eu mesmo, como vejo as outras pessoas e suas expressões no rosto, suas histórias nas linhas das mãos.

A fome me lembra do vazio interno do meu corpo. Bebo água e fumo mais um cigarro para enganar meus instintos. Abro o porta-níquel da minha carteira e conto os sessenta centavos que tenho, mais uma vez. E tudo mais que há dentro são cartões imprestáveis, documentos inúteis e um bilhete de trem. Não. Minha antipatia não é produto de minha falta de dinheiro. Pelo contrário, essa condição muitas vezes me libertou. Tenho raiva dos planos, das perspectivas, das possibilidades e oportunidades irrefutáveis. Gosto mesmo é de ficar sozinho.

Perdi o último trem, noites atrás. Consegui um ônibus passando quase vazio, dentro dele apenas o motorista velho, o cobrador mal-humorado e sonolento e três passageiros, aos quais não prestei a mínima atenção. Fiquei sem destino por um tempo, perambulando dentro daquela lata, que balançava e ruía por cima dos buracos do asfalto. Desci na avenida no começo da madrugada, com os poucos reais que me sobravam no bolso, e procurei por um bar aberto onde pudesse beber uma cerveja e sentar, fumando meus últimos cigarros do maço. O dono do bar era um veado magro, que ficava atrás do balcão pequeno, abrindo garrafas, contando dinheiro e mal dizendo em sussurros os clientes que não vão embora. Obviamente não ficou nada feliz quando me viu entrando e pedindo por cinco, uma cerveja que custava seis reais.

Bebi às pressas e me joguei de lá. Andei pelas calçadas onde outros bares acumulavam bêbados, patricinhas e fumantes do lado de fora. Todos pareciam tão felizes, que tive raiva de suas felicidades, de suas juventudes e belezas. Ninguém tinha nada à me dizer e por instantes, me concedi o prazer de minha própria desagradável companhia, por completo. Comprei uma garrafa de cerveja e subi a rua até os bares desaparecerem as minhas costas. De volta a avenida, caminhei trôpego pela calçada larga, encarando quem viesse em minha direção. Era uma hora da manhã e ainda existia pressa nas pessoas. Sentei na praça dos fundos do museu, com minha cerveja e um livro velho, e quando ameacei levar outro cigarro aos lábios dois moleques chegaram perto e me perguntaram se, por acaso, eu não teria um pouco de maconha. Sinalizei que não e os dois lamentaram. Não desiludidos o bastante, me pediram um cigarro. Eu tinha dois cigarros no maço amarrotado e muitas horas de madrugada pela frente. Me desculpei e recusei o pedido.

Procurei a caixa de fósforo no bolso, enquanto os dois me fitavam com aqueles olhos de garotos bobos, como se me perguntassem: "Então, o que faremos agora?". No meu bolso só haviam moedas soltas, papeis e uma chave. Fui obrigado então, em nome do bom senso de gratidão a oferecer meu último cigarro para o garoto que tinha um isqueiro. Ele se iluminou quando lhe passei o maço e me acendeu o isqueiro, que fiz questão de tomar de suas mãos e acender eu próprio o meu vício.

Um bêbado, morador de rua, que gritava com os drogados do outro lado da praça, veio em nossa direção. Aos gritos, veio puxando por um pedaço de corda um pinscher esquelético, que assim como o dono não conseguia andar em linha reta. O homem era um negro velho, de cabelos e barbas brancas e dentes e olhos amarelos. Na mão trazia algo dentro de uma garrafa, que mais tarde nos disse ser "Gasolina". Ele tentou empurrar brincos e pulseiras feitas de arame para os dois garotos enquanto eu continuava lendo, tentando entender alguma coisa no meio da gritaria que o velho promovia. Nada feito. Então me levantei e me propus uma caminhada noctívaga e pouco etílica. 

Fazia frio e eu sonhava com um gole de conhaque. Me contentei em apenas pensar no calor doce que desce pela garganta e enganar o sono e a fome. Fiquei esperando, sentado em um ponto de ônibus, até que os trens voltassem a rodar e eu pudesse voltar para o que chamo de casa. Para me distrair, pensava em mulheres, em músicas velhas, em como a cidade parecia roncar de barriga pra cima, apesar de sua pompa de "cidade que não dorme". Que seja, fiquei ali sentado, acompanhando o sonambulismo megalomaníaco e cosmopolita desse lugar frio e cinza. Era engraçado para mim perceber que enquanto milhares de pessoas largadas pelo país afora sonhavam em largar tudo e se arriscar na cidade grande, eu sonhava em gritar um "Foda-se!" bem alto e abraçar a estrada.

A avenida que no início da manhã estava movimentada, agora apresentava um desfile de poucos personagens. Me levantei e andei até o portão da estação, esperando as quatro horas da manhã chegar para destrancar o cadeado. Um homem, vestindo jeans se aproximou e perguntou-me se eu sabia a que horas os trens voltariam a funcionar, lhe respondi que por volta das quatro e meia, "Eu espero!". Ele agradeceu e se afastou alguns passos, permaneceu de pé, do outro lado da calçada olhando as horas no celular e deliciando seu cigarro matinal. Não resisti e perguntei se, por acaso, ele teria algum daquele para me arrumar. Ele não respondeu, tirou um de dentro do maço, me entregou e saiu sem dizer mais nada.

Já se passavam quatro horas e infinitos minutos de espera, quando um funcionário gordo com cara de sono, abriu o portão. Desci as escadas, peguei meu bilhete, passei a catraca e me arrastei até a estação. O trem demorou alguns minutos, chegando de um ponto de luz dentro do túnel envolvido por trevas e passando rápido, golpeando o vento e freando bruscamente na estação. Os avisos sonoros gritaram, as portas se abriram, entramos eu e outros miseráveis com sono, e desmaiamos jogados nos bancos duros, na direção de nossos planos, das nossas vidas regradas. Do sono de nossos presentes até o desanimo de nossos futuros.

Não sei bem ao certo porque me lembrei disso tudo. Talvez porque nesse dia pude sentar e conversar com minha raiva. Colocar nossa relação em pratos limpos. Pude brindar a felicidade de poder tê-la. É possível que toda essa cólera, essa aversão absoluta pelo explicável, tenha me revelado a vida vagabunda e preguiçosa que gosto de ter. A felicidade que tenho em ser diferente de vocês. A graça que acho quando vejo vocês colocando suas vidas nos trilhos mais retos, nas suas poucas curvas e precipícios, como uma montanha-russa para criancinhas. Eis a razão que tenho para conseguir olhar para todos vocês e refletir que a minha vida não pode ser tão pobre assim. É a maneira que encontrei de avisar a todos vocês que eu não ligo pra quanto dinheiro eu tenho e muito menos para quanto dinheiro vocês têm. Não quero passar a vida atrás de uma mesa contando as notas. E agora tudo o que tenho para lhes dizer é que vocês parecem tão estúpidos achando que têm as coisas, quando na verdade são as coisas que os têm. Prefiro a vida assim, sem as correntes que prendem à esse padrão. Sem a coleira da moralidade e a focinheira ética que vocês próprios vestem. Prefiro essa vida pobre, de quem anda quilômetros a pé, pelo acostamento das rodovias. Prefiro a vida de quem bebe até conseguir resolver tudo na conversa ou no braço.  Prefiro a vida dos que estão loucos para vivê-la.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Karma

Tenho pensado bastante e cheguei a uma conclusão: Preciso ler o "On the road" de novo. Passear na montanha-russa de linhas de Kerouac de novo, pra sentir o mesmo frio na barriga. Aquele medo e atração pelo inexplicável, pelo impensável. Então, penso em meus amigos e o rumo que suas vidas estão levando. E fico feliz.

Tenho pensado em uma mudança maior. Em mexer com as coisas, de verdade. Criar sobre mim, as minhas próprias expectativas. Ter a coragem de ir atrás da vida que quero ter, como Sal Paradise. Fico pensando em caronas, que me levem adiante, que me apresentem a generosidade que as pessoas ainda conseguem ter. Eu penso em uma estrada, cortando o país com uma guitarra e os velhos bons amigos. Para onde o mundo está nos levando?

Não sei se foi algum problema no início, ou alguma coisa que perdi no caminho, mas sei que, de uma forma bem estranha de explicar, eu penso muito diferente das pessoas. Talvez tenha nascido tarde demais, ou muito cedo. Não é pra mim fácil seguir os mesmos padrões dos outros. Ser julgado pelos mesmos padrões dos outros. Somos todos de carne, mas não pensamos igual, fazemos coisas diferentes. Por que motivo devo eu ser julgado pelos mesmos parâmetros que os outros são? Quero uma vida diferente!

Quero a sorte de uma vida minha, sem muitas vaidades, mas do jeito que eu acho que deve ser. Quero agora ter do que me lembrar quando estiver mais velho. Ficar onde eu acho que devo ficar, onde eu nasci para ficar. Não importa quanto dinheiro eu vou ter para mostrar aos outros quando eu chegar lá. Quero a vida simples e feliz de quem faz o que gosta, e que fazendo o que gosta transforma o acumulo exagerado de dinheiro em uma coisa boba. É a paz que os ricos não conseguem ter.


Engraçado aquela sensação de saudade do que nunca tive. É como se sua vida falasse para você: "Tem alguma coisa errada! Onde você se perdeu, marinheiro?". Sua vida, enjoada de tanto balançar no vai e vem de ondas baixas do mar que é a sua rotina, decide romper o silêncio e quase implora. "Me leve para onde eu devo ir!".
Mas você está ocupando demais, regrando e programando seu futuro, às vezes não dá pra ver. E realmente, muita gente consegue ser feliz planejando suas vidas, colocando o futuro no papel o tempo todo. Bem como disse, p
or que motivo devo eu ser julgado pelos mesmos parâmetros que os outros são?

Eu sonhei que estava andando. Por horas, andei pelo acostamento da estrada, como se voltasse pra casa. O sol esquentava rápido o asfalto e segurava a fumaça dos carros no chão, acinzentando o horizonte que parecia nunca chegar, como uma miragem no deserto. Os carros e caminhões passavam em alta velocidade, dentro de suas certezas e destinos. E eu andava, mesmo quando meus pés cansavam, eu andava. Até chegar em casa. "Eu não preciso fazer as coisas do mesmo jeito que vocês fazem e mesmo assim eu chego onde vocês chegam." Esse é o karma de quem não se dá bem com números, é difícil contar os dias, as notas, as pessoas.
Eu gosto é de perder a conta. Gosto daquilo que ainda não vi, mas sei que existe por ai. E mesmo que o horizonte pareça não chegar, eu vou continuar andando, para saber o que existe além disso aqui.

Eu quero minha vida de volta. Obrigado por cuidarem de tudo por tanto tempo. Mas agora eu vou atrás de dar conta dela, ou vou acabar tendo que vivê-la dependendo de outros, mal acostumado, fraco. Tenho um encontro marcado com a selva que a vida lá fora é. Preciso entender os seus perigos, suas emoções, suas liberdades. Quero apenas a oportunidade de ver o mundo com os meus olhos, respeitando o modo como os outros o vêem. Quero dar a minha opinião. Quero não ser tratado como mais um maluco idealista. Só vou atrás das coisas que quero mas não consigo, por ser pesado demais o peso das expectativas. Ainda mais das expectativas que não são minhas. Eu quero tentar. Andar sozinho. E quero voltar feliz e com saudades e um sorriso no rosto, porque consegui fazer as coisas que eu queria.

terça-feira, 31 de julho de 2012

A sete palmos.


   Como definir um sentimento? Dizendo? Escrevendo? Com gestos? Na minha cabeça isso não faz sentido. Quem provaria a autenticidade dessas palavras ditas, escritas ou interpretadas?
Qual é a importância de saber o que é verdade e o que não é? O importante deveria ser o sentir, não provar se é real. Às vezes, mentiras são verdades, melhores conduzidas, melhores adaptadas.
Verdade é uma maldição, uma filosofia criada por diplomatas bem criados, bons maridos e cidadãos, ávidos para foder, cafajestes e adúlteros, comedores de esposas sem-vergonha. Verdade foi criada para foder os homens, quem fala a verdade se fode e não me falem sobre a honra da sinceridade. A honra da sinceridade é a maior mentira já inventada, esqueçam a gloriosa hipocrisia escondida por trás de seus dentes brilhantes. Continuem criando e vivendo suas mentiras, elas vão dizer quem você é, pois uma mentira contada muitas vezes se torna verdade.

   Eu vejo-a entrar, com seus cabelos vermelhos, pegando fogo. Vestida em um azul celeste simples. Sua pele alva, refletindo uma luz ofuscante, as mesmas mãos pequenas, de criança, as unhas bem feitas e pintadas, como sempre, em um esmalte claro. Por um instante, espero que ela não me veja sozinho, sentado no balcão. Espero que ela desista, que procure e veja um miserável de costas e vá embora.
Escondo o rosto, dou outro gole seco na cerveja quente, mas é inevitável não vê-la chegar. É irresistível o movimento de suas pernas, suas coxas insinuantes sob o vestido quase curto. Finalmente ela me nota, com um sorriso discreto de Monalisa no rosto, caminha em meio aos lobos, tão famintos por ela quanto eu. Eles a devoram com os olhos, podem sentir o gosto de sua pele ou de seu seio na língua.
Ela não se desfaz, continua. Sinto meu coração batendo na velocidades dos seus passos, lembro-me de como adoro o formato de seus pés e de como eles ficam lindos de qualquer modo. Escalo seu corpo, percorro milimetricamente cada detalhe. “Ela é um anjo”, sussurro comigo mesmo. Nesse momento, a cerveja rasga minha garganta, como se tivesse a faringe sendo corroída por soda caustica.

-Você está diferente...
-Achei que você não viria.
-Você me ligou, não ligou? Porque não viria?

Porque talvez eu não valha seu tempo? Porque fui ou continuo sendo um filho-da-puta? É claro que ela viria, sempre gostou de me ver miserável, sempre gostou de ser a Madre Theresa cuidando de pobres diabos.

-Você está certa, não há motivos pra não nos vermos, casualmente.
-Casualmente? Escuta, querido... nós... Nós não somos amigos, pode ser que nunca conseguiremos ser.
-Não estou te pedindo nada, estou? Muito menos amizade.

Amizade... Pro inferno com a amizade! Ela ainda brinca comigo, mesmo depois de tanto tempo, desde a ultima vez que a vi, ostentando seu sorriso diabólico.

-Demorei? Está a muito tempo me esperando?
-Dois anos... Dois anos e uns vinte e cinco minutos.
-Não começa. Já falamos sobre isso, milhares de vezes, nós sabemos o que acontece quando levamos isso adiante.
-Nós sabemos? A gente não sabe de porra nenhuma! Nunca sabemos o que acontece.
-Seja sincero, diga a verdade pelo menos hoje.
-Verdade? Não sei o que isso significa. Minha vida é feita de mentiras. Amor de mentira, amigos de mentira,  trabalho de mentira.
-Você continua sendo o mesmo paranoico, doente.
-É, eu continuo sim! Um fodido de um doente! É o que eu sou!
-Cala a boca! Sério, o que tem feito?

“Dissimular”:
1. Fingir que não vê, não ouve ou não sente.
2. Suprimir a aparência de (o que se quer ocultar)
3. Deixar passar; fazer vista grossa sobre.

Galinha falsa. É a mesma... Uma galinha dissimulada. Muda de assunto como muda de calcinha. Como uma prostituta barata, que muda da negociação para os gemidos em um piscar de olhos, e muda dos gemidos para a cobrança mais rápido ainda, quando sua meia hora chega ao fim.

-Não tenho feito nada, digo... Nada além do habitual. O mesmo trabalho, as mesmas dívidas. Só os bares mudam.
-Os bares e as mulheres que você se mete.
-As mulheres não fazem diferença, são todas iguais, mudam os nomes, os números, o preço.
-Você deveria se cuidar, parar de fumar, beber menos, arrumar uma boa pessoa...
-Ahh vá se foder! Você se acha melhor? Você superou melhor o que aconteceu? Você continua ridícula por trás dessa máscara, desse batom... Vou fumar um cigarro lá fora, vem.

Viro e sinto-me apunhalado. Ela não está melhor que eu! Não pode estar. Passamos pela mesma estrada... Ela não pode estar melhor.

-Tá com frio?
-Sua grosseria é inacreditável... Inacre...
-Tá bom, esquece.
-Esquece? Esquece? Já esqueci... Esqueci há dois anos!
-Esqueceu o caralho! Você não esqueceu porra nenhuma! Você tentou, fugiu, tentou se distrair com outro, mas não esqueceu nada!

Outro? Dois anos. Quantos? Quem? Não aguentaria saber... Mas sinto que me confortaria... Sem nomes, apenas números. Quantos? Será que ela gemeu com eles como gemia para mim?

-Você tá certo. Me distraí. Precisei saber o que existia além de você. Precisava de alguém pra me fazer te esquecer. Esquecer as suas mentiras bem contadas.
-Certo... O que você precisava era dar.
-Também! Já que tocou nesse assunto, me diz, quantas foram?
-Quantas o que?
-Quantas? Quantas você comeu quando tava comigo? Quantas putinhas abriram as perninhas?

Devo falar das duas amigas dela? Faria diferença duas conhecidas entre quinze ou vinte outras desconhecidas?

-Quinze. Foram quinze.
-Eu não acredito! Quinze cadelas... E eu no seu jogo, acreditando no seu amor de merda.

Onde devemos encaixar o amor nessa história? Porque sempre alguém toca nisso? Como se mostra o amor? O que acaba com o amor?

-O que eu sentia por você estava acima da verdade e da mentira.
-Sentia?
-Sentia... Sinto. O que é o certo e o que é o errado?
-Não me importa mais. Na verdade, não preciso mais perder tempo com essa pergunta.
-Você cobra meu amor, mas enterra o seu. Questiona minha sinceridade, mas omite a sua. Se não é sincera, seja corajosa, diga que não me ama.

Ela abre os lábios, se preparando, mas engole as palavras e esquiva. Procura o que dizer, no meio dessa guerra. Sabe que tem mais a dizer do que a cobrar.

-Ainda tá com ele?
-Sim... Na verdade faz um ano. Um ano e três meses.
-Você o ama?
-Não é da sua conta. Sei que gosta de se sentir miserável. Peça a outra pessoa para te humilhar.
-Você faz o que fazia comigo? Chupa ele da mesma forma? Faz a mesma cara de puta?
-Você é podre!

Eu sou podre... Ela é um anjo. Ela é feita de pureza infinita. A cadela mais pura. No meio da maior sacanagem, ela parecia ser uma santa. Uma santa gemendo, gritando... Pedindo, implorando para ser fodida. Uma putinha com asas e uma auréola brilhante. Gritando “Me bate!”. E depois de tudo acendia um cigarro, não tinha o hábito de fumar diariamente, mas deitada nua, encostada no meu peito, acendia dois cigarros e me passava um. Sentia o gosto da sua boca, do seu hálito. Eu transava com outras, mas eram insignificantes, inotáveis. Ela não. Ela era minha vida!

-Você é um anjo.
-Esquece... Eu vou embora.
-Você não precisa ir agora.
-Disse que não voltaria tarde.
-Entendi... O bonitinho te deu horas pra voltar. Disse pra ele aonde viria?
-Disse que iria beber com uma amiga que terminou com o namorado.
-Quem diria... Mentindo para o homem que você ama. Verdade não vale nada.
-Não menti pra ele...
-Não? Não me lembro de ser mulher, sua amiga eu sei que não sou, sem contar que a última pessoa com quem eu terminei, foi você.
-É diferente. Ele tem ciúme de você.
-Ciúme? Seria trágico se não fosse cômico.
-Quer saber? Eu sinto pena de você. Você se acha melhor que ele, mas eu achei nele o que procurei em você. Ele me ouve, não importa o que eu diga. Você é baixo, sente inveja. Tenho certeza que imagina ele me comendo. Tenho certeza que imagina eu arranhando as costas dele e não a sua, chupando ele e não você. Você pensa em mim, sendo comida por ele, mas olhando pra você.

Desgraçada. Ela entra na minha cabeça. Ela diz como se soubesse exatamente tudo o que eu penso. Como se o que eu imaginasse fosse tão nítido que ela pudesse ver escrito no meu rosto.
Ela disse o que no fundo era o que eu queria ouvir. Ela disse calma, sem raiva, sem ressentimento. Ela foi sincera. Ela descobriu o que eu pensava o tempo todo. Aquele maldito. Aquele filho-da-puta sugando seus mamilos, lambendo seu corpo. Aquele filho da puta e ela... Putinha santa... Se entregando,sendo chupada.

-Você tem razão.
-Enfim, você está mostrando o que é.
-Mostrando o que eu sou? Você sabe o que eu sou! Do que está falando? Agora não me conhece? Eu sou o podre, o maldito! O filho-da-puta envenenado com a tua saliva. E você? O que você é? Você continua sendo a mesma cadela que era na minha cama? Pede pra ele te bater também? Pra gozar em você?

Eu implorei, pedi a Jesus Cristo. Quis que ela morresse, ou que eu morresse. Eu quis sentir sua boca na minha. Sua língua. Meus dentes no seu pescoço. Minhas mãos no meio de suas pernas.
Eu a amava. Amava o gosto da sua pele. O cheiro. Ela se derramava, escorria como uma vela acesa em minhas mãos. Ela é minha droga, minha dependência, minha abstinência. Ela é a minha morte, meu câncer. A santa putinha que me lambia. A mulher da minha vida.

-Continuo. Faço tudo o que fazia contigo e mais um pouco. Mais do que você imagina. Sou a mesma cadela, a mesma putinha que você comia.
-Eu amo você.
-Cala a boca. Ama o caralho!
-Eu am...
-Cala a boca, porra! Não estraga! Nosso destino é discutir, nunca mais se entender. Não podemos mais ter o que já tivemos. Não estraga.
-Tudo bem. Tá tudo certo.

A aurora começava a brilhar, por trás das nuvens nascia um lindo dia e as pessoas começavam a sair para trabalhar, comprar jornal ou cigarros, tomar café da manhã nas padarias. Eu estava lá, na frente do mesmo bar. Acorrentado. Olhando para ela. Seu vestido, um palmo acima dos joelhos, sua coxa rígida. Suas mãos de criança, esmalte claro nas unhas. Seus cabelos caindo nos ombros frágeis. Seus olhos de anjo, roubando o azul do céu. Eu não controlo mais o que faço, não estou no controle.

-O que está fazendo?
-Como?
-Meu Deus, o que você está fazen...
-Desculpe, não foi minha... Desculpe, mas eu...

Minhas mãos... Estavam no rosto dela. Quando percebi estavam estacionadas no seu rosto. Porque me afastei? Porque ela não se moveu? O que eu estou fazendo? O que está me chamando? A boca dela não se move, seus olhos se fixaram. A boca dela. De novo, o gosto da boca dela, sua textura, colidindo com a minha, arrancando faíscas. Ela é a minha droga.

Ela diz...

-Não, por favor. Eu não vou aguentar. Acabou! Só... Esquece. Por favor... Por favor...

Ela deu três passos pra trás, se virou devagar e sumiu. Se misturou na aurora, se misturou com o resto. Eu fiquei. Dou o último trago, sento na sarjeta. Ela sumiu, junto com o amor. O amor. Enterrado, a sete palmos. O amor de mentira, a vida de mentira, a mulher de mentira. É tudo mentira! Porque verdade foi feita para as boas pessoas. Isso não é amor. Isso é putaria, putaria da boa. Isso não é verdade. É a nossa melhor mentira, a mentira contada milhares de vezes. A mentira de um miserável e uma puta santa. A mentira que definiu o que nos tornamos: impossíveis um para o outro. Nós descobrimos. Impossíveis... Nós descobrimos.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Na próxima estação

"Não passes o tempo com alguem que não esteja disposto a passá-lo contigo"

  Destranca-te. O dia é mais triste quando o amor não te alcança. É mais triste quando a solidão é a única dança. Engana-te. Deixe os outros com suas verdades, com suas idades. Não me importo mais, não por quem tu és. Me importo por quem eu sou, se estou contigo.
  Desvenda-te. Joga tuas lembranças na mesa, monta teu quebra-cabeça. As horas são lentas, me lembre antes que eu esqueça. Levanta-te. É dia de sol e céu azul, feito para se apaixonar na rua, a toa. Calma que o tempo voa. Se for deixar para trás, lembra-te que não sou só um amigo.
  Renova-te. Junta poeira em cima do que fica parado, fica em silêncio quando o telefone não toca do outro lado. Inventa-te. Deixe que o novo saia de dentro, solte o cabelo no vento. Um sinal, algo que nos mostre um começo para o final. Os escombros de um tempo de amor antigo.
 Liberta-te. Mágoas não completam coleção. Tristeza é permitir que o amor se vá, que desça na próxima estação. Permita-te. O sonho se faz nas ruas, de uma alma se fazem duas. Não deixe que estraguem teu dia. Sei que você sente-se sozinha, mas não faça de seu destino um castigo.

"A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam.
Gabriel Garcia Márquez

domingo, 1 de abril de 2012

"tua boca no canto da minha..."

"E desde então, sou porque tu és
E desde então és
sou e somos...
E por amor
Serei... Serás...Seremos..."             
Pablo Neruda

  Mostro-lhe se vieres. Tenho tudo em mãos para lhe dar. Ela chora com medo, seu pavor de ser gentil. Medo de seus dias proibidos, de suas saudades e desejos reprimidos. E pela minhas veias ela corre, descalça, de vestido.  Em mim crava suas raízes, em mim crava seus dentes e suas unhas.  
  Despeja teu riso em mim, me machucando, brincando com meu equilíbrio. Como o impacto de uma onda, me rodando em um redemoinho de espuma e água azul, ela me gira com seus olhos. Mas não imploro para que pare, você sabe que isso não faz parte da minha natureza. Deixo com que brinque. Mesmo que tua boca me trague, mesmo que teus dentes me rasguem, deixo com que brinque. Porque te amo.
  E amo o jeito como vai embora. Deixando suas cicatrizes em mim, cicatrizes de âncoras que se arrastam, de suas correntes arrebentando em meu porto. Amo ver-te indo, sem saber se voltas. Amo-te com o beijo, com o vento, com o sexo. Amo tua boca no canto da minha, sua falta de coragem, sua indecisão. 
  Que seja. Talvez veja meus olhos em ti. Em tua boca vermelha, nos nós de seus dedos, em seus pés, nas voltas dos fios de seus cabelos. É o que somos que importa. É o que somos por trás de nossas tristezas, por trás de nossa solidão. Pode ser que não repare quando reparo em ti. Em sua boca desenhada, as marcas que teu sorriso abre, no charme de teus olhos, no desenho de seu rosto. Pode ser que não repare em mim.

"Depois de tudo te amarei 
como se fosse sempre antes 
como se de tanto esperar 
sem que te visse nem chegasses 
estivesses eternamente 
respirando perto de mim"
Pablo Neruda


segunda-feira, 12 de março de 2012

  Você está em lugar estranho. A cama que você deita, o sofá onde senta. Tudo parece fora do lugar. A conversa é diferente, as pessoas se revelam, o cheiro da casa é outro. A geladeira tem coisas diferentes, o banheiro é de outro jeito. O barulho dos carros na rua não é o mesmo. Mas a cerveja continua gelada.
  Você fala. Mais do que devia, menos do que podia. E a conversa continua até que alguém se canse, então você continua a beber, assistindo qualquer coisa na televisão, que também não é sua. Olhando para todos os lados, desconhecendo tudo, mesmo sabendo onde tudo fica. "Fique a vontade!".
  Amanhã a semana começa de novo, tão rapidamente quanto passou a última. Você pensou em tantas coisas, em tanta gente que já passou e mesmo assim deixou suas cicatrizes, gente que deixou suas marcas. Os pixadores do muro da sua vida. Os compositores da sua vida, os sócios da sua história.
  Você acha complicado escrever aqui. Tenta se habituar através do ambiente, fingindo que sua vida também é feita aqui. Mas por onde ela não é construida? Enfim, você continua sozinho, mesmo tentando se enturmar. Fingindo ser interessante para as pessoas pelas quais você não espera mais nada. Mas a cerveja continua gelada.
  Existe um gole de vodka, esquecido na geladeira. Mas será que pode te ajudar? Difícil saber, na sua memória as coisas se encaixam como um quebra cabeça sem todas as peças. Panelas, esfirras, alcool, sexo contado. O domingo vai.
  Elas estão lá. Esperando. Desistindo. Desistindo de mim, do que tenho a oferecer, do pouco de bom que tenho. Esquecendo da vida que levo. Nada disso é o bastante. O que você quer e quem quer conquistar? Neste mundo movido a motores caros, o que um pobre garoto movido a sonhos, músicas e alcool pode almejar?
  Pelo menos a cerveja continua gelada...

segunda-feira, 5 de março de 2012

 Você sempre tem alguém ao lado e mesmo assim continua se sentindo sozinho. Andando, sem saber o que falta. Parado, sem saber o que quer. Procurando algo que preencha o buraco dentro das suas vontades. Misturando milhares de coisas dentro de ti, transformando suas idéias em nitroglicerina. A qualquer balanço, em qualquer queda e a qualquer instante você pode explodir.
 E não há avisos. É pior que uma bomba relógio. Você sente o peso das coisas dominando sua vida, suas horas, suas prioridades. Chega um certo momento que ninguém mais pega sua mão para atravessar a avenida, você tem que se arriscar a dar seus passos, mas no fundo, você não quer decepcionar ninguém, certo?
 Às vezes, sua vontade é de pedir uma carona, sumir na estrada, desaparecer por um tempo. Deixar a poeira baixar. Você cansa de só respirar, respirar, respirar... Às vezes dá vontade de jogar tudo pra cima e deixar que tudo caia de uma forma diferente, e deixar quebrado o que se quebrou e continuar com o que permaneceu intacto.
 Mas o que você faz quando não sabe o que quer? Quem consegue te orientar, acender uma luz para que você consiga andar? Você escuta aqui, ouve ali, e todo mundo tem algo pra te dizer, mas às vezes o que eles falam não se encaixa pra você. E a maioria não vai te entender.
 Esse mundo é uma confusão. Tão confuso que às vezes é exato, preciso, como o maquinário de um relógio, e às vezes a engrenagem que atrasa é você. Gente comum não aguenta a loucura da cidade grande e você tem que enlouquecer um pouco mais a cada dia, para conseguir aguentar a vida no meio dessa multidão vazia.
 Você segura o tom, fecha o rosto e esconde a voz. Olha ao redor e consegue sentir eles te olhando e perguntando "O que ele está fazendo aqui?". E quanto mais você conhece gente, mas você se afasta, menos consegue gostar delas. Porque seus amigos de agora não têm a mesma inocência dos seus amigos de infância. De algum jeito, você prefere se manter longe, a sós, pra tentar pensar. Na sua cabeça, só você pode desatar os nós, mas por qual começar?

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

São Paulo em chamas.

   Sente-se. Vamos assistir a chuva tentando apagar o incêndio que nós provocamos. O Theatro Municipal, o Mercado Municipal, a Prefeitura, todos eles em chamas. Pessoas acenam do alto do Edifício Copan, do Altino Arantes, do Itália e do Martinelli. Gritam por socorro! Pessoas se jogam do Viaduto do Chá, do Santa Efigênia, da Ponte Estaiada...

   Que horas são? São Paulo despreza isso tudo, não é questão de patrimônio, arquitetura ou arte. Você sabe bem do que eu falo. Nesse momento as pessoas estão presas dentro do Metrô, respirando o mesmo ar quente. É um cenário apocalíptico diário. Em um dia caem asteroides queimando o céu, no outro as águas invadem as ruas engolindo sonhos.


   Aproveite, sinta o gosto do momento. Encha o peito de fumaça. Veja como é bonito o modo como as nuvens ficam vermelhas, como se estivessem em brasas. Quem foi que disse que não haviam vulcões ativos por aqui? Nós somos os vulcões, cuspindo nossos ressentimentos e desapontamentos, que liquefazem tudo o que permanece no caminho. Explodindo. Cobrindo a cidade cinza de cinzas.

   Não. Isso não é revolução. Nem mesmo sobrevive mais do que vinte e quatro horas. Isso não é indignação, não é comunhão. Nessa noite não existem heróis nem vilões. É um laboratório, um experimento. Amálgama. Mainstream e Underground. A combustão de nossas amarguras. Isso não é manifesto. Apenas um tapa na sua cara, um 'virar as costas' para os seus problemas. Somente um cuspe pra cima.

   Isso é viver em meio ao caos, viver em meio aos lobos. Toda a diferença que caracteriza essa padronização. Agora as pessoas correm, meu amor. Correm pela 9 de julho, pela 23 de maio, pelo Costa e Silva, correm pela Avenida Paulista. As pessoas fogem da sombra que invade devorando tudo, como se este câncer estivesse correndo pelas veias, artérias e vasos sanguíneos da cidade. Agora o seu dinheiro não vale mais, seu filho da puta! 

   São Paulo pegou você. Agora você é propriedade da cidade e não há mais o lugar do rico e o lugar do pobre. É tudo uma coisa só, como se a metrópole inteira fosse uma esquina. Uma loja de inconveniência. O fogo rasga a cidade. Pele, carne e ossos despedaçados por uma tesoura sem corte e enferrujada. Por trás das cortinas amareladas, de vidros cheios de marcas de dedos, por trás da subjetividade suja que insiste em nos impregnar.

   É como sentir as unhas nas costas. Um orgasmo. O suor frio correndo pelo seu pescoço e por entre os seios. O sorriso que se abre ingenuamente em seus lábios. Segue o espetáculo, um anfiteatro lotado de déspotas, hipócritas e miseráveis. Os que eram da esquerda estão azuis de medo. Os que eram da direita estão vermelhos de raiva. Há pessoas amontoadas, espremidas dentro dos ônibus de outro milênio e as grandes janelas são pinturas, retratos, grandes vidros que mostram para os que estão do lado de fora a merda de vida desprezível que você cultiva e o cansaço que armazena.


   Olhe para os rostos, meu anjo. Dá pra enxergar o medo em cada linha de expressão, em cada pupila dilatada. As ovelhas perderam seu pastor e agora não importa mais qual livro velho você segue. Acabou a luz. Os semáforos estão desligados, eles perderam o juízo. Os telefones celulares estão fora da área de cobertura. Na televisão, fantasmas; No rádio, estática. Olho pra ela. É lindo vê-la de perfil, com o brilho laranja nos olhos claros. Ela sorri, deliciando-se com o desespero deles. "Eles parecem formigas fugindo de uma inundação. Ratos abandonando o navio." As mãos dela ainda cheiram à gasolina. Assistimos ao Tietê se enchendo de sangue. Ao Parque do Ibirapuera sendo invadido pela nuvem de gafanhotos. Ao cogumelo atômico na Catedral da Sé e sua onda radioativa, varrendo a imundice. Se aproximando de nós.

   Ainda ouve-se o toque de recolher. Grades e arames farpados, limitando as fronteiras dessa infelicidade. O alarme em alta ressonância na órbita dos ouvidos. Um grunhido, um uivo, um clamor. A voz que ultrapassa a barreira de calor caminhando de pés descalços pelo asfalto quente. Fuligem, fuzis e gás lacrimogênio. Só basta uma faísca e um pouco de oxigênio, talvez conhaque, querosene, ou sangue. Algo que purgue, que consiga exceder o limite dessa impermeabilização.

   Ela apaga o cigarro e se levanta. Pega sua xícara de chá de hortelã, calça os chinelos e me beija na testa. Ela diz 'boa noite', entra e desliza a porta de vidro, me deixando sozinho na sacada. Me lembro do gosto de seu sexo, da textura de sua pele,  da rigidez de suas coxas e o calor que existe no meio delas. Lembro do gosto de sua saliva, da minha língua em seu mamilo, de como ela morde a boca, torce o corpo, fecha os olhos e respira fundo. Ouço sirenes, latidos, gemidos. Pode se ouvir o barulho do papel queimando a cada trago. Ela vai deitar. Eu vou ficar aqui, pensando em como seria ver a cidade inteira ardendo daqui de cima. Talvez acabe me envenenando com doses semi-letais de álcool, pelos lados da Rua Augusta, esperando que essa chuva ácida caia e apague os incêndios da minha memória.




"Fiz comigo mesmo um pacto silencioso de não alterar uma linha do que escrevo. Não estou interessado em aperfeiçoar meus pensamentos, nem minhas ações. " -Henry Miller - Trópico de Câncer

sábado, 14 de janeiro de 2012

"Seja marginal, seja herói."

   Sente-se ou peça outra dose. Brinde, escorregue, dance e caia. Vá no banheiro quantas vezes julgar necessário. Beije, procure, acenda um cigarro e encoste os cotovelos no balcão. Faça besteira, fale alto, gesticule. Vomite, durma, desista. Mas nunca, nunca deixe seu copo cheio cair.
   Ando cansado dessa velha história de não desistir. Às vezes, desistir é a melhor decisão que você pode tomar. Pare de pensar no que as pessoas querem que você pense. Se foder é habitual, todo mundo se fode. A diferença fica entre os que se fodem com o copo cheio na mão e os que se fodem com o copo quebrado no chão.
   A pior coisa que pode te acontecer é ter medo de desistir, porque coragem pra empurrar tudo com a barriga não falta à ninguém. Espere. Veja as coisas acontecendo. Não escolha um lado tão rápido, tenha paciência. É tudo feito de escolhas e renúncias, não é? Então pare com esse otimismo, essa esperança de que tudo vai dar certo, pois não vai e é exatamente essa a graça de viver.
   A vida perfeita só se encaixa em um mundo perfeito, para pessoas perfeitas, as quais nós não somos. Cabe-nos a incerteza, o êxito e o hesito. Felicidade? Todos nós queremos. Mas quem realmente sabe ser feliz por completo? Grite os seus defeitos, pois as suas qualidades nenhum filho da puta vai reconhecer. Seja você mesmo, ou não. Seja o que você quiser ser, o que você tiver que ser e pra quem você puder ser. 
   Seja o melhor e o pior que puder. Seja o melhor e o pior exemplo para se seguir. 'Seja marginal, seja herói'. Porque essa porra de vida passa rápido, meu amigo, e você não vai querer ser a mesma pessoa pra sempre. Beba, torça, grite. Fale quase tudo o que você tem guardado, faça pose, mude seu jeito. Mude sua vida.

Mas nunca...

...Nunca deixe seu copo cheio cair.

Talvez seja cansaço, cansei de talvez...

   É o veneno que escorre, por entre bocas estranhas. Em algum canto escuro qualquer, o calor por entre a ponta dos dedos. O cheiro que domina o quarto, os pés descalços desfilando pelo piso de madeira. A pele branca, a curva das costas, o precipício.
   O gole que queima, a fumaça que arranha. Mostre tudo e um pouco mais do que tiver, não se esconda por trás de dúvidas e medos. Teu amor eu descarto, não sou mais um garoto em sua brincadeira. A boca destranca, és o que mostras, fogos de artifício.
   Esqueça de tudo, mentira tem hora. Não me peça pra aprender a perder. Talvez seja cansaço, cansei de talvez. Eu vou arrumar algo ou alguém para culpar. Vou escolher uma janela para ver outro lugar. Sei para onde ir, só não sei como chegar. Que siga o vício.
   Então fico mudo, vivo o meu agora. Se queres sol eu começo a chover.  Não quero um pedaço, é só timidez. Eu vou atrasar, vago, além, devagar. Procuro idéias e sonhos baratos para alugar. Eu quero sair, tentar construir minha sorte ou azar. Que seja o início.