"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



domingo, 21 de outubro de 2012

volto logo...

 Se amanhã tudo mudar, tudo bem. Há de ter um caminho em frente. Algum sinal, algum atalho. Amanhã há de ter alguém. Uma noite após a outra, elas entram, brincam e saem, levando o que puderem, deixando o que perderem. 

 Amanhã teremos uma nova chance, por hoje existe apenas jazz. Amanhã vamos mudar. Mudar de casa, de hábito, de roupa, de ideia. Mais uma oportunidade para fazer certo ou foder com tudo. Pensamos nisso amanhã.

 Agora, beba e esqueça. Não há o que possa ser feito nessa noite. Estamos sozinhos aqui. As portas não se abrem mais a essa hora. Isso não é necessário. Espere o dia chegar e clarear a vida. Quando as cores aparecerem, tudo ficará mais fácil. Agora a sombra lá fora está nos esperando para mastigar nossos sonhos. Não, a vida não é ruim. Algumas pessoas são. 

 Para que se preocupar, de cima do salto alto, perdendo sua pose? Se amanhã eu tiver que ir embora, não se preocupe. Tudo vai dar certo, estamos totalmente no controle do acidente que são nossas vidas. Já nos acostumamos com as coisas que não dão certo, não são mais surpresas. Se algo não deu certo, de alguma forma já era esperado, então acaba dando certo. Está cansada? E como foi o seu dia? Teve chuva e neblina de novo? 

 Qualquer dia desses teremos que fugir pelo esgoto. Como todo mundo faz quando tudo começa a cair. Nesse dia, andaremos de mãos dadas. Correndo de tudo o que deixamos. Mas hoje não! Estou ficando velho e não aguento mais tanta correria. Espere por esse dia. Enquanto isso, prepara um café. Vou ir comprar um maço de cigarro, volto logo...

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Arame farpado.

   De cima da ponta dos pés, ela passa deixando um pedaço seu no ar. Rodopiando pela atmosfera fica o seu cheiro, invadindo o lugar. "É só sabonete!", ela diz. Em segundos, tudo a ela pertence. No instante de um momento, na rapidez de um piscar de olhos, ela me domina inteiro.
   Eu assisto ao seu desfile de más intenções e pernas trançadas, no seu caminhar extraordinariamente desregulado. Permaneço atônito, rendido pela observação. Olho-a como se pudesse rompê-la, como se pudesse despi-la. Vejo por trás de sua pele branca e de sua carne rosada, suas veias finas e azuladas. Vejo os seus ossos leves, balançando com graça. Ela corre pela sala.
   Nunca diz na hora. Faz mistério até para dar bom-dia. Se impregna de perfume, charme e dissimulação. Recluso-me. Sou atraído pela luz dos seus olhos e morro grudado em seu batom. Morro batendo as asas, tentando escapar de seus dentes. Eis que ela aparece com sua agulha e me fura o braço e me anestesia. Me põe deitado em seu colo e lê Neruda, passando os dedos pelos meus cabelos. E sua língua dá sentido às palavras, rolando-as como a espuma do mar uruguaio. "Eu sou criança, não sei ver. Apenas posso enxergar.", ela justifica. Ela tem o gosto da novidade. Tenta-me esconder seus problemas com a bebida e com falsos sentimentos. Absorve seus remorsos em grandes goles de gin tônica e muda de olhos, em três ou quatro piscadas, põe-se a brilhar como se pudesse abrir as cortinas de dentro da cabeça e deixar que a luz do sol entre e lhe bronzeie os pensamentos. Ela não deve ser amada. Não merece amor. Ela é só sabonete e chá, durante a manhã. Sono e café durante a tarde. Sexo e álcool durante toda a noite.
   Tem dentes de arame farpado, seguram e rasgam o que alcançam. Morde com força, rindo como uma menina. Parece ter nascido assim, com os dentes retos e afiados. Ela gira, descalça, tirando a roupa e dançando. Abre garrafas, acende cigarros e troca discos. E quando não satisfeita, abre três livros ao mesmo tempo e joga suas páginas no liquidificador. Lendo simultaneamente o que lhe aguça a percepção. Ela é a luz entrando pelo buraco de agulha da minha retina, de minha câmara fotográfica.
   Ela chora quando se lembra de casa. Ela desliga o telefone e acende um baseado. Se debruça na janela e tenta olhar o mais distante que consegue, mas sua visão é fraca. Anda por aí com uma nuvem negra em cima da cabeça, soltando relâmpagos e trovões. Dobra esquinas deixando fogo no chão, partindo corações, pisando em poças d'água. E todos lhe querem algo. Querem ao menos serem notados. Mas ela não os vê, é criança, só pode enxergar. Os pobres se escondem atrás de suas notas e de seus carros, e por isso ela não se interessa. É uma devoradora de ideias e paisagens. 
   Tento lhe beijar, mas ela desvia. Aprendeu isso comigo. Sem dizer nada, encosta a sua boca na minha e fecha os olhos. Não me beija. Permanece imóvel, respirando. Abre os olhos, sorri e me diz que o mundo está acabando. Que precisamos fazer um filho, que precisamos ir para o Uruguai. Que precisamos nos perder de manhã em algum café de Paris. Precisamos beber rum e fumar charutos em Havana. "O mundo está acabando, não se esqueça disso. Tudo vai explodir lá fora e poderemos estar em qualquer lugar do mundo, transando em um quarto de hotel quando tudo acabar."
   Ela me pede para abrir a porta e então sai. Olhar para trás não é uma opção. Tem mania de parecer com as personagens dos filmes e livros que gosta. Se fosse possível entendê-la de uma forma simples, ela simplesmente se desanimava e cruzava os braços. E de repente aparecia com um sorriso novo, por cima de sua genuína falsidade. Ela volta do mesmo jeito que vai. Dessa vez é ela que sobe em mim, sentada em meu colo, cantando Billie Holiday. Envenenando minha consciência, entorpecendo-me os sentidos. Viciando cada célula de meu corpo, aprisionando-as em suas mãos, entre os seus seios. Ela me bebe quente. A mim, ela bebe em pequenos goles. Deixando-me evaporar. Deixando-me acabar junto com o mundo. Como se pudesse me sugar, ela me envelhece e se torna cada vez mais nova e irresponsável. Com amor, ela fecha meus olhos com a ponta dos dedos e sussurra em meu ouvido. "Eu não o amo. Apenas lhe quero bem.". Por acaso, lhe encaro de frente, vejo seus cabelos de serpente e me torno pedra. Afundo lentamente e me afogo no meu copo meio vazio enquanto ela espera pelo final da noite, pelo final do fogo. Enquanto nós esperamos pelo final do mundo.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Solitária.

   Deram-me uma moeda. Foi tudo o que tive durante vinte e cinco dias. Joguei-a pra cima e fiquei tateando ao redor. Girando-a entre os dedos. Os meus queridos cinco centavos. Deitei-me no chão e a coloquei nos olhos, como uma antiga tradição fúnebre, embora o barqueiro cobrasse duas moedas pelo trajeto e eu não estivesse propriamente morto. Eu estava morrendo, sem dúvida. Cada célula do meu corpo ia se apagando, em contagem regressiva.
   Toda luz que me entrava aos olhos vinha dos buracos na porta de ferro, somente de dia. De noite não havia nada. Nem mesmo as alucinações que as trevas proporcionam. Havia apenas a escuridão e o gosto da umidade podre das paredes, me sufocando. Morrer não era uma má ideia, mas eu não tive modos, não tive forças, nem mesmo para me tirar algo já frágil, debilitado e torturado por pessoas que nem mesmo conhecia antes de chegar lá.
   Lembravam de mim de tempos em tempos, algo parecido com uma mistura de água, cimento e sal era me dada. Depois de um tempo, acostumei-me com o cheiro disso. Com o cheiro do metal enferrujado. O cheiro dos restos no chão. O cheiro ruim que vinha de mim, dos meus poros, das minhas necessidades.
   Já não lembrava do meu rosto. Mapeava-o com as pontas dos dedos para tentar imaginar de um modo táctil minhas feições. Diferente dos outros eu não falei sozinho, permaneci calado em exílio, contemplando o som da minha respiração empoeirada. Se falei dormindo, não posso dizer. Era possível ouvir o som dos tijolos rangendo sobre o cimento, a água escorrendo como vela derretida pelos quatro cantos. Tive medo de ser esmagado pela pressão, afogado pelas lembranças.
   É incrível o que pode acontecer nas faculdades de uma pessoa quando lhe é privada a noção do tempo. Desde que fui jogado nessa cova, todo este tempo de confinamento, comicamente, parece ter durado apenas um dia. Eles não sabem que prendendo as pessoas dessa forma, acabam anestesiando tudo. Ali a vida parecia completa e tudo o que eu precisava era do oxigênio que entrava pelos vãos da porta e de meus queridos cinco centavos.
   Alguém entrou. Nenhuma palavra. Apenas o rangido da porta e o som do solado de sapato. Um fantasma. Ele trazia uma cadeira, colocou-a de frente para mim e sentou-se. Podia apenas ver seu contorno, como neon dos cinemas da velha São João. Deitado nos fundos da cela, apenas esperei que o fantasma desse início ao procedimento. Sabia como as coisas funcionavam ali. Todo inferno tem suas regras.

-Onde eles estão?

   Rompendo o silêncio com uma voz calma, sem expressão, ele pergunta e espera. Retira uma lanterna pequena no bolso do paletó e acende-a. A bola de luz branca projeta-se no teto que parecia ser feito de bolor. Foi a primeira luz que vi depois de dias. Fiquei hipnotizado por alguns segundos, como um cego que acordasse em um belo dia podendo enxergar. Me apaixonei por aquela faixa branca que explodia. Quis ir ao seu encontro como um inseto.

-Podemos ficar aqui a noite inteira. Assim como você eu também não tenho para onde ir. Não sinta-se tão miserável, afinal, eu também sou um preso daqui. A única coisa com que você deve se preocupar é o fato de eu não ser um prisioneiro confiável para dividir uma cela.

   O raio azulado vai descendo lentamente do teto em minha direção, até me atingir o rosto como um trem de carga. Senti minha alma queimando com o clarão de mil bombas atômicas. Tive certeza de que nunca mais enxergaria, tive certeza de que meus olhos derreteriam, me deixando com dois vazios a mais no rosto. Não tive forças para gritar, o ar não conseguia entrar ou sair de mim. Tudo o que existia era a dor branca e o riso de fantasma.

-Você sabia que o diretor recebeu uma boa verba? E esses estudantes filhos da puta têm coragem de contestar o comprometimento que temos com a nação. Mas esses são uns bostinhas, marxistas de merda. Você é diferente, realmente um pensador! Um homem letrado não devia ser tratado assim, sei que posso lhe ser muito útil se aceitar cooperar e responder. Tenho grande influência nas decisões.

   Silêncio. Mesmo que eu me entregasse e quisesse falar, não poderia, havia desaprendido como isso era possível. Não se tratava de idealismo. Meu silêncio era o único pedaço de dignidade em que consegui me agarrar para não afundar no mar de esquecimento que eram esses corredores. Podiam arrancar-me dedos, pedaços da orelha, dentes. Mas não podiam me cortar a verdade de dentro de meu estômago. Eu a havia engolido, juntando saliva e sangue na boca por uma noite inteira.
   A verba recebida pelo diretor, foi usada até mesmo para a manutenção das ferramentas, ou seja, novos alicates, martelos, serrotes, prensas e fios. Pareciam brinquedos nas mãos dessa sombra que estava sentada na minha frente, examinando-me, oculto por trás da irradiação de sua lanterna. Ele se levantou e em um só movimento levantou a cadeira acima da cabeça e a arremessou para o chão, na direção onde eu estava deitado, hipnotizado.
   Apenas pude sentir o impacto, nenhuma dor ou som. Apenas o impacto e o calor descendo do topo da cabeça, por cima dos olhos, pelo canto da boca até o pescoço. O calor com gosto de ferro.

-Eles me olham e acham que é muito fácil para mim. Não sabem o quanto é trabalhoso estudar as milagrosas anatomias humanas, para saber até que ponto elas aguentam seus calvários. Eles não sabem como um homem sem nada como você pode dificultar o meu serviço, não sabem que estamos, nós dois, trabalhando em conjunto aqui.

   O que me rendeu risadas durante algum tempo foi perceber que o mesmo Estado que nós condenava como mentirosos, nos torturava para saber a verdade. A guerra parecia existir apenas do lado de fora dos muros. Aqui dentro nós esperávamos para morrer, e esperávamos que isso fosse rápido, mas ao mesmo tempo não queria ser morto com uma bala só, ajoelhado no pátio, sendo deixado por dois ou três dias como um exemplo para não ser seguido.
   Com um alicate ele triturava as minhas falanges. Torcia e quebrava, como se meus ossos fossem feitos de giz e minha carne não passasse de um resto de matéria em decomposição.

-Nomes e lugares... É apenas o que quero, trago-lhe um bom pedaço de carne, até mesmo posso cortá-la em pedaços pequenos, já que sua mão esquerda ficará um tempo de férias. O que acha? Ainda lembra do gosto que a carne tem? Me diga o que quer e eu lhe trago. Podemos entrar em um acordo bem mais civilizado do que esse. Ninguém precisa sentir dor.

   Podia sentir sua respiração, estapeando meu rosto com o cheiro de cigarro e conhaque. Podia sentir o cheiro de sua loção pós barba. Podia ouvir seu maxilar estalando, seus olhos piscando. Era possível ouvir o sangue congelando em suas veias, paralisando seus batimentos cardíacos. Ele pôs-se de pé, ajeitando as mangas da camisa e limpando as mãos sujas de sangue em um pedaço de pano. Respirava como um cavalo de corrida antes da largada. Eu pensei em minha casa. Pensei no cheiro do café e das roupas de minha mãe. Pensei nas madrugadas sentado na escada, fumando e olhando as estrelas. Pensei em tudo que essa guerra já havia me roubado por todos esses anos.

-Você é um porra de um maluco! Todo mijado e fodido por causa de uma cambada de cabeludo que não toma banho. Faz ideia de quantos de seus amiguinhos já passaram pelas minhas mãos? Faz idéia do que fiz a cada um deles? Todos falaram, gritaram, choraram. Mas você é um anjo. O próprio messias imundo, servindo de mártir para uma causa perdida. Nenhum de vocês será lembrado!
                                                  -

   Entregaram-me um papel, uma muda de roupas sujas e abriram as portas. Dezenove anos depois, me mandaram para a rua. Expulsaram-me das minha grades de metal enferrujado e disseram-me algo sobre tempos de paz, sobre transição. Me jogaram para a prisão que é a vida do lado de fora, direto para a ilusão das avenidas da cidade. Das grades invisíveis que permanecem nos rodeando. Caminhei sem reconhecer os caminhos, sem reconhecer a paisagem. Vaguei perdido em minha terra natal, sem conhecer os rostos, as roupas, os carros. Já não conhecia mais a vida. Jamais encontrei alguém que havia conhecido em minha vida anterior. Tornei-me mais um sem-nome de esquina sem história para ser contada. Confinei-me nessa prisão externa. Minha memória foi falhando com o tempo. Não comia, não pedia dinheiro. Eu apenas existia. Acordava em dias perdidos, em ruas estranhas, sendo expulso, chutado da minha própria cela. Tornei-me meu próprio carcereiro, meu próprio diretor e, absolutamente, meu próprio torturador.
   Tudo o que puderam me tirar, foi a ilusão de liberdade que tinha. Livres não somos, nunca. Esqueci-me de como era minha voz, só conhecia o som da minha tosse, dos meus pés e dos latidos de um cachorro vira lata que não me largava. Já haviam se passado dois anos desde que fui solto e eu continuava vestindo o mesmo terno velho que me entregaram. Tudo o que tinha no bolso eram os meus queridos cinco centavos. Deitado na Rua Sete de Abril, ignorado pela multidão de rostos insignificantes que passavam, eu o vi andar. Soube no instante que era ele. O cabelo penteado para trás, bem mais velho do que devia parecer na época. Vestido como um senhor semi-respeitável de meia idade, no rosto o bigode desenhado de militar. Soube que era ele. Lembrava do som dos seus pés. Lembrava da sua respiração de cavalo de corrida. Pude sentir o cheiro de sua loção pós barba. Ele não me notou, nem mesmo minha mão completamente deformada chamou sua atenção, simplesmente não me viu. Levantei-me, observei ele dobrando a esquina com a Ipiranga e voltei a andar. Lá se foi o meu fantasma, lá fui eu. Nunca mais voltei. Nunca mais.