"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



terça-feira, 17 de janeiro de 2012

São Paulo em chamas.

   Sente-se. Vamos assistir a chuva tentando apagar o incêndio que nós provocamos. O Theatro Municipal, o Mercado Municipal, a Prefeitura, todos eles em chamas. Pessoas acenam do alto do Edifício Copan, do Altino Arantes, do Itália e do Martinelli. Gritam por socorro! Pessoas se jogam do Viaduto do Chá, do Santa Efigênia, da Ponte Estaiada...

   Que horas são? São Paulo despreza isso tudo, não é questão de patrimônio, arquitetura ou arte. Você sabe bem do que eu falo. Nesse momento as pessoas estão presas dentro do Metrô, respirando o mesmo ar quente. É um cenário apocalíptico diário. Em um dia caem asteroides queimando o céu, no outro as águas invadem as ruas engolindo sonhos.


   Aproveite, sinta o gosto do momento. Encha o peito de fumaça. Veja como é bonito o modo como as nuvens ficam vermelhas, como se estivessem em brasas. Quem foi que disse que não haviam vulcões ativos por aqui? Nós somos os vulcões, cuspindo nossos ressentimentos e desapontamentos, que liquefazem tudo o que permanece no caminho. Explodindo. Cobrindo a cidade cinza de cinzas.

   Não. Isso não é revolução. Nem mesmo sobrevive mais do que vinte e quatro horas. Isso não é indignação, não é comunhão. Nessa noite não existem heróis nem vilões. É um laboratório, um experimento. Amálgama. Mainstream e Underground. A combustão de nossas amarguras. Isso não é manifesto. Apenas um tapa na sua cara, um 'virar as costas' para os seus problemas. Somente um cuspe pra cima.

   Isso é viver em meio ao caos, viver em meio aos lobos. Toda a diferença que caracteriza essa padronização. Agora as pessoas correm, meu amor. Correm pela 9 de julho, pela 23 de maio, pelo Costa e Silva, correm pela Avenida Paulista. As pessoas fogem da sombra que invade devorando tudo, como se este câncer estivesse correndo pelas veias, artérias e vasos sanguíneos da cidade. Agora o seu dinheiro não vale mais, seu filho da puta! 

   São Paulo pegou você. Agora você é propriedade da cidade e não há mais o lugar do rico e o lugar do pobre. É tudo uma coisa só, como se a metrópole inteira fosse uma esquina. Uma loja de inconveniência. O fogo rasga a cidade. Pele, carne e ossos despedaçados por uma tesoura sem corte e enferrujada. Por trás das cortinas amareladas, de vidros cheios de marcas de dedos, por trás da subjetividade suja que insiste em nos impregnar.

   É como sentir as unhas nas costas. Um orgasmo. O suor frio correndo pelo seu pescoço e por entre os seios. O sorriso que se abre ingenuamente em seus lábios. Segue o espetáculo, um anfiteatro lotado de déspotas, hipócritas e miseráveis. Os que eram da esquerda estão azuis de medo. Os que eram da direita estão vermelhos de raiva. Há pessoas amontoadas, espremidas dentro dos ônibus de outro milênio e as grandes janelas são pinturas, retratos, grandes vidros que mostram para os que estão do lado de fora a merda de vida desprezível que você cultiva e o cansaço que armazena.


   Olhe para os rostos, meu anjo. Dá pra enxergar o medo em cada linha de expressão, em cada pupila dilatada. As ovelhas perderam seu pastor e agora não importa mais qual livro velho você segue. Acabou a luz. Os semáforos estão desligados, eles perderam o juízo. Os telefones celulares estão fora da área de cobertura. Na televisão, fantasmas; No rádio, estática. Olho pra ela. É lindo vê-la de perfil, com o brilho laranja nos olhos claros. Ela sorri, deliciando-se com o desespero deles. "Eles parecem formigas fugindo de uma inundação. Ratos abandonando o navio." As mãos dela ainda cheiram à gasolina. Assistimos ao Tietê se enchendo de sangue. Ao Parque do Ibirapuera sendo invadido pela nuvem de gafanhotos. Ao cogumelo atômico na Catedral da Sé e sua onda radioativa, varrendo a imundice. Se aproximando de nós.

   Ainda ouve-se o toque de recolher. Grades e arames farpados, limitando as fronteiras dessa infelicidade. O alarme em alta ressonância na órbita dos ouvidos. Um grunhido, um uivo, um clamor. A voz que ultrapassa a barreira de calor caminhando de pés descalços pelo asfalto quente. Fuligem, fuzis e gás lacrimogênio. Só basta uma faísca e um pouco de oxigênio, talvez conhaque, querosene, ou sangue. Algo que purgue, que consiga exceder o limite dessa impermeabilização.

   Ela apaga o cigarro e se levanta. Pega sua xícara de chá de hortelã, calça os chinelos e me beija na testa. Ela diz 'boa noite', entra e desliza a porta de vidro, me deixando sozinho na sacada. Me lembro do gosto de seu sexo, da textura de sua pele,  da rigidez de suas coxas e o calor que existe no meio delas. Lembro do gosto de sua saliva, da minha língua em seu mamilo, de como ela morde a boca, torce o corpo, fecha os olhos e respira fundo. Ouço sirenes, latidos, gemidos. Pode se ouvir o barulho do papel queimando a cada trago. Ela vai deitar. Eu vou ficar aqui, pensando em como seria ver a cidade inteira ardendo daqui de cima. Talvez acabe me envenenando com doses semi-letais de álcool, pelos lados da Rua Augusta, esperando que essa chuva ácida caia e apague os incêndios da minha memória.




"Fiz comigo mesmo um pacto silencioso de não alterar uma linha do que escrevo. Não estou interessado em aperfeiçoar meus pensamentos, nem minhas ações. " -Henry Miller - Trópico de Câncer

sábado, 14 de janeiro de 2012

"Seja marginal, seja herói."

   Sente-se ou peça outra dose. Brinde, escorregue, dance e caia. Vá no banheiro quantas vezes julgar necessário. Beije, procure, acenda um cigarro e encoste os cotovelos no balcão. Faça besteira, fale alto, gesticule. Vomite, durma, desista. Mas nunca, nunca deixe seu copo cheio cair.
   Ando cansado dessa velha história de não desistir. Às vezes, desistir é a melhor decisão que você pode tomar. Pare de pensar no que as pessoas querem que você pense. Se foder é habitual, todo mundo se fode. A diferença fica entre os que se fodem com o copo cheio na mão e os que se fodem com o copo quebrado no chão.
   A pior coisa que pode te acontecer é ter medo de desistir, porque coragem pra empurrar tudo com a barriga não falta à ninguém. Espere. Veja as coisas acontecendo. Não escolha um lado tão rápido, tenha paciência. É tudo feito de escolhas e renúncias, não é? Então pare com esse otimismo, essa esperança de que tudo vai dar certo, pois não vai e é exatamente essa a graça de viver.
   A vida perfeita só se encaixa em um mundo perfeito, para pessoas perfeitas, as quais nós não somos. Cabe-nos a incerteza, o êxito e o hesito. Felicidade? Todos nós queremos. Mas quem realmente sabe ser feliz por completo? Grite os seus defeitos, pois as suas qualidades nenhum filho da puta vai reconhecer. Seja você mesmo, ou não. Seja o que você quiser ser, o que você tiver que ser e pra quem você puder ser. 
   Seja o melhor e o pior que puder. Seja o melhor e o pior exemplo para se seguir. 'Seja marginal, seja herói'. Porque essa porra de vida passa rápido, meu amigo, e você não vai querer ser a mesma pessoa pra sempre. Beba, torça, grite. Fale quase tudo o que você tem guardado, faça pose, mude seu jeito. Mude sua vida.

Mas nunca...

...Nunca deixe seu copo cheio cair.

Talvez seja cansaço, cansei de talvez...

   É o veneno que escorre, por entre bocas estranhas. Em algum canto escuro qualquer, o calor por entre a ponta dos dedos. O cheiro que domina o quarto, os pés descalços desfilando pelo piso de madeira. A pele branca, a curva das costas, o precipício.
   O gole que queima, a fumaça que arranha. Mostre tudo e um pouco mais do que tiver, não se esconda por trás de dúvidas e medos. Teu amor eu descarto, não sou mais um garoto em sua brincadeira. A boca destranca, és o que mostras, fogos de artifício.
   Esqueça de tudo, mentira tem hora. Não me peça pra aprender a perder. Talvez seja cansaço, cansei de talvez. Eu vou arrumar algo ou alguém para culpar. Vou escolher uma janela para ver outro lugar. Sei para onde ir, só não sei como chegar. Que siga o vício.
   Então fico mudo, vivo o meu agora. Se queres sol eu começo a chover.  Não quero um pedaço, é só timidez. Eu vou atrasar, vago, além, devagar. Procuro idéias e sonhos baratos para alugar. Eu quero sair, tentar construir minha sorte ou azar. Que seja o início.