"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

I've got you under my skin...

De leve, pouco a pouco, passa queimando. Um calor agradável, tornando-se, traço à traço, em uma dor aguda através dos músculos e tecidos. Liberando endorfina na corrente sanguínea, como um pedaço de chocolate, dominando o amargo da boca, desenrijando as articulações e atenuando o peso sobre o abdómen cansado.

Tudo bem.
'Eu sacrificaria qualquer coisa, seja o que for, para ter você perto de mim'
Em meio ao incomodo sofrimento há uma voz suave, com um bom piano e banda de acompanhamento, tornando a sala branca e retangular, com poucos assentos e aparelhos, um pouco mais viva.
Linhas e traços, em um azul royal, turvam aos poucos seus olhos, mas ela lhe diz: "They Can't Take That Away From Me". Você concorda espremendo os olhos, lembrando-se de relaxar e não demonstrar a dor.
Ella Fitzgerald costumava vir acompanhada de café, meia luz e, talvez, um cigarro, mas não dessa vez. Hoje ela vem só com sua voz, distraindo, dispersando os pensamentos ao mesmo tempo em que Louis Armstrong os junta, como um mosaico de cacos de vidro em sua mente. 

Tem razão, tem razão... Hoje era um dia mais Needles And Pins, ou Should I Stay Or Should I Go Now. No final, você já tem agressividade suficiente pra ouvir Clash ou, até mesmo, a balada dos Ramones. Sinta-se grato por Ella não lhe abandonar.

I saw her today I saw her face. It was the face I love and I knew I had to run away and get down on my knees and pray that they go away. Still it begins. Needles and pins. Because of all my pride the tears I gotta hide...
Come on! Keep that breathless charm!

A dor é repentina, acaba junto com o ruído que hora grita e outrora sussurra. De repente, nota-se que se trata apenas de um arranhão, que deixa-lhe com a duvida sobre sua intensidade ou profundidade e sobre o estranho fato de parecer não cicatrizar, tornando-se de alguma forma visível. No final , esquece-se o sofrimento, a acidez por baixo da pele. Louis lhe diz: "No matter what the future brings as time goes by".

All right... All right... Keeps rainin' all of the time

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Sweetness...

Percebe-se agora o desejo indiscreto e imprudente de saber o que há por baixo deste véu. Percebe-se esta nova curiosidade irremediável, este interesse inexplicável em descobrir o que há por baixo desses arranhões, lacerando-os até torná-los feridas abertas que não se deixam cicatrizar, para assim revelar seus mistérios tão impregnados entre a carne e ossos, protegidos por uma pele fina.

Sente-se o gosto doce de uma novidade surpreendente, um sabor tão irresistível que ignora-se subitamente os avisos e conselhos dos que não se arriscam a senti-lo. Perde-se o bom senso atrás das respostas que queremos, para as perguntas que muitas vezes já conhecemos. Embora as vezes não seja tão doce assim, no final, o gosto sempre dura pouco e volta-se a  procurá-lo em um novo segredo que interesse ou satisfaça o desejo incomensurável de experimentar o novo.

Lembra-se de todas as dificuldades enfrentadas para tê-lo quebrando-se por entre os dentes, em centenas de pedaços que deixam sua impressão na boca conforme são mastigados. Lembra-se também de não permitir que a dificuldade se transforme em orgulho ou em impedimento absoluto, pois o difícil torna-se interessante, porém torna-se cansativo quando o difícil pensa que é impossível.

Enfim, corre-se atrás de conhecer o que a discrição tem a ocultar. Arrisca-se a saber e experienciar a sensação do desconhecido, aparecendo por trás das cortinas, entrando em cena. Permitindo que essa curiosidade irresponsável tome conta de seu apetite e anseios. Apostando suas últimas fichas de coragem em um destino inesperado, admirável ou arrebatador, apenas para sentir a verdade descer-lhe pela garganta, mesmo que não seja tão doce. Mesmo que o seu gosto não dure tanto. 

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Letras velhas em uma folha amarelada...

Café as quatro da manhã? Qual é o problema?
Desenho mulheres estranhas, só pra matar a vontade de fumar. Algumas vezes é mais fácil, outras vezes parece que não vou aguentar. Tanto faz a ordem de tudo... No final, eu nunca pareço satisfeito.

Há anos eu não escrevo nada, nenhuma linha, porra nenhuma. Devo ter me esquecido. Devo ter esquecido de você, esquecido de mim. Devo ter esquecido de me lembrar...

Devo ter me cansado dessa rotina, de toda essa monotonia, cansado de escrever sobre o meu cansaço. Esse cansaço vagabundo de quem não tem porque se cansar...

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Amém...

É tudo uma questão de paciência. É uma questão de ter a sorte de estar no lugar certo e na hora certa para assistir um grande espetáculo, direto das primeiras fileiras desse teatro construído por mentiras e alucinações. Ela não se deixa fascinar por suas atuações, ela mantém-se à distância, governando seu estado de espírito afastada de qualquer revolução ou motim.
Ela continua mantendo sua irrefreável política de pão e circo, aplicando seu famoso status-quo pra ter tudo debaixo de seus sapatos, todo seu universo nas rédeas, bem controlados e funcionando direito.
Você se contenta, afinal ela mata sua fome, não sempre que você quer ou precisa e sim quando você já não acha mais suportável.
O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai nossas ofensas..
Ela lhe distrai quando precisa te enganar e faz isso bem. Ela gosta da sua cidadania e de que você escute e aprenda o que ela te ensina, cumprindo suas leis, honrando suas regras. Afinal, você daria sua própria vida à ela em qualquer guerra, para proteger as fronteiras do corpo que só você crê possuir autorização para ultrapassar. Proteger os recursos naturais que só você crê poder extrair. Escreve hinos em sua homenagem e poemas quando, por ventura, sente-se exilado de sua companhia.
No fundo, por mais que faça, sabes bem que ela lembra-se de ti quando precisa e esquece-lhe com a rapidez de um piscar de olhos, no instante de um pensamento. Mas é nela que moras e procuras abrigo. Pouco importa os protestos por aumento de atenção ou reforma de benevolências, ela sempre dá de ombros, reprimindo suas reivindicações com um olhar com o peso dos escudos e armas de toda uma tropa de choque. Mas quando pára pra pensar, você sente-se grato, santificando seu nome, indo até seu reino, fazendo sempre sua vontade, assim na terra como no céu. Perdoa suas dívidas, deixa-se cair em tentação. Conforma-se e agradece, como um escravo alforriado que não se vai, pois não sabe mais viver em liberdade.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Get out...

- O que há de errado contigo? - Ela lhe perguntou - O que mais você quer, porra? Quer que eu finja que eu não sei o que você faz?
- Não tenho o que lhe esconder, só não preciso te mostrar. O que você acaba vendo não é meu problema. Só não vou ser hipócrita dizendo que não quero mais nada, que estou satisfeito com tudo isso. O que você pensa que existe entre nós, guria?

Ela agora encara seu rosto mal barbeado e inexpressivo, cerrando os dentes e piscando compulsivamente os olhos, borrando de leve o contorno delineado em preto, provocando uma vermelhidão irritada em suas escleras e uma dilatação instantânea de suas pupilas.

- Guria? Você não se enxerga mesmo! - Ela responde em um suspiro de indignação - Age igual a um menino. Um menino mimado. Pensa que pode ir atrás do mundo e voltar correndo pra um abraço quando as coisas que você quer não acontecem? Você é um moleque!

Ela tinha razão, pelo menos um pouco, afinal era o que ele vinha praticando há algum tempo; a busca desenfreada pelas outras alternativas convenientes da vida e do mundo. Ele acreditava que navegar era mesmo preciso e que ancorar-se em um só porto, por mais tranquilo e confortável que pudesse ser, era um desperdício de tempo e vontade. Ele havia ponderado que o seu desprendimento não era uma necessidade, apenas um caminho natural que foi sendo traçado. Não precisava ir muito longe, nem abrir estradas e não o fez para enfrentar algo ou alguém, o fez apenas pra descobrir até onde iria chegar o seu desbravamento quase 'bandeirante'.

- Não devo e, na verdade, nem conseguiria tirar sua razão. Não me preocupo com isso, nem com o fato de parecer infantil...
- 'Parecer' não! Você é infantil! - Ela interrompe, quase atropelando os dentes com a língua na tentativa de atingi-lo com uma expressão de efeito - Eu só queria ter você de um jeito simples e normal como a maioria das pessoas fazem, mas você é um menino, como eu já disse, que larga os seus brinquedos correndo, para ir comer um doce ou jogar bola. Mas eu não, entendeu? Eu não vou ser seu brinquedo te esperando no quarto, jogada no meio da bagunça que é a sua vida! Tá me ouvindo?
- Tô sim...
- Então olha pra mim quando eu falo com você! Chega de ser criança. Hoje eu quero tentar falar com um homem!
- Falar? Você já ultrapassou há muito tempo o tom e volume de uma fala com essa sua histeria. Quer que eu seja seu? Como pretende fazer isso? Vai me amarrar na sua cama? Não sei se consigo aguentar isso, não sei se consigo ser só de você, ou só de qualquer outra.

Agora um fraquejo toma conta do rosto dela, invadindo a boca entreaberta e indecisa, as narinas mais abertas do que de costume, as olheiras emoldurando seus olhos castanhos subitamente desistentes e indiferentes, contrastando com os movimentos, aparentemente, involuntários e quase eufóricos de suas sobrancelhas. Ele não demonstra nenhum sentimento, nunca aprendera à fazer rodeios para dizer a verdade, quando esta fosse necessária. Limitava-se à engoli-la quando julgava o momento inadequado ou a verdade crua e demasiada de mal gosto.

- Escuta, doce. Eu gosto de você, mas...
- Não me chama mais assim. - Ela fala como se tivesse engasgado-se com a frase - Por favor!
- ...Eu gosto de você mas... Você tem os seus planos e eu não tenho os meus. Fico feliz por você ter essa habilidade de organizar sua vida, mas pra mim isso é difícil, é diferente. Não tenho como tentar fazer tudo do jeito que for melhor pra você ou pra nós, não agora. Tudo tá acontecendo muito rápido.
- Você está tentando justificar seu comodismo, seu conformismo. Você espera que eu aceite você saindo por ai, com aqueles bêbados que andam ao seu redor e com aquelas putinhas que se esfregam em você só porque sua música toca na rádio e quando você voltar, se você voltar, eu estar aqui presa pela realização dos seus sonhos e a desistência dos meus?
- Eu não espero nada! Você não precisa aceitar nada, muito menos fingir que não viu e não sabe. Não te prendo aqui! O que lhe prende é a sua vontade de ter comigo o que você arquiteta pra você. Mas eu não sou um projeto, doce... Eu sou uma pessoa, uma realidade, uma vida que esbarra em outras, todo santo dia. Não é preciso ser um gênio pra saber que eu vou me interessar por outras mulheres, também não é preciso ser um padre pra tentar me convencer que isto é errado e imoral. Nada disso tem relação alguma com meus amigos ou quem vai nos shows, se as coisas deram certo pra mim eu preciso aproveita-las, pois não sei quanto mais elas vão durar.

Ela não diz mais nenhuma palavra, tira a chave do apartamento de dentro do bolso de sua jaqueta jeans e entrega-lhe, vai até o quarto e pega sua bolsa, recolhe dois ou três livros da estante, alguns cd's e sai, batendo a porta às suas costas. Desaparece no corredor do prédio, desaparece do labirinto confuso e enigmático da rotina que a nova vida de rockstar dele se tornou. Desaparece até mesmo das poucas músicas que ele compôs pensando nela. Desaparece levando seu cheiro de perfume não tão caro, levando seu gosto de não tão suficiente. Desaparece nas primeiras horas dessa nova década.