"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



terça-feira, 11 de setembro de 2012

Sessenta centavos

Senti vontade de correr, mas me cansei da idéia. Tudo o que tenho no estômago são alguns goles de café. O amargo da boca parece não ter fim, inundando as papilas gustativas sem deixar espaço para nada de mais doce. A verdade é que não suporto mais. Meus pés doem. 

O céu cinza como o mármore de uma sepultura quase permite que o sol se mostre vivo dentro de sua cova, envolvendo as ruas em um mormaço de panela de pressão. Limpo o suor da testa com a manga da minha camisa, acendo outro cigarro e continuo sentado, esperando o semáforo fechar e abrir. Queria gritar, como se isso pudesse desfazer os nós, como se pudesse vomitar minha raiva cafeinada que vem de minhas entranhas. Eu quis pintar o céu da cor do sangue.

A fumaça que me violava o peito parecia uma nuvem ácida, corroendo meus brônquios e descarregando ira na corrente sanguínea. Pode ser que eu tenha duas ou três pedras dentro do sapato, mas elas não me incomodam mais. A manhã se arrasta, cortada por buzinas, conversas e o barulho de aço das rodas do trem oscilando nos trilhos. Por milhares de vezes, me flagrei olhando para os extintores e saídas de emergências, esperando por um descarrilhamento, esperando por um acidente. 

Logo cedo, a fúria me vem à tona. Ela é um certo tipo de gordura que a bílis não é capaz de emulsificar. Ela me faz ter raiva dos outros e, consequentemente, de mim próprio. A fúria me impele a imaginar a vida fora deste lugar quadrado, colorido em tons pastéis e depressivos, circundado por cercas brancas, em uma frustrada tentativa de transformar essa vida cansativa e patética em uma falsa vida calma de campo. É tudo mentira. Eles tentam nos enganar o tempo todo. Sempre que ficamos em dúvida, alguém aparece com um band-aid, uma explicação ou uma solução ridícula. Algo que preencha as rupturas de nossos botes salva-vidas. Pois que deixem o meu afundar, dessa vez.

Não tenho o mínimo interesse em aperfeiçoar o modo como penso. Não tenho a intenção de caber nos parâmetros. Gosto de estar sozinho, é quando realmente posso pensar na minha maneira insignificante de ser. Eles me olham e perguntam o tempo todo "Porque fizeste isso? Porquê?", e tudo que posso lhes devolver é o silêncio de quem não sabe e não gosta de se explicar. Então sinto vontade de agredir alguém, com toda a força que tenho nas mãos. Sinto vontade de machucar uma pessoa qualquer, arrancando sua sinceridade mais pura e depois lhe ser grato e pedir perdão. Sinto vontade de me ver pelo meu lado de fora, caindo de lugares altos. Queria poder me ver, do alto de alguma janela, caminhando pelo outro lado da rua, como se pudesse não ser eu mesmo, como vejo as outras pessoas e suas expressões no rosto, suas histórias nas linhas das mãos.

A fome me lembra do vazio interno do meu corpo. Bebo água e fumo mais um cigarro para enganar meus instintos. Abro o porta-níquel da minha carteira e conto os sessenta centavos que tenho, mais uma vez. E tudo mais que há dentro são cartões imprestáveis, documentos inúteis e um bilhete de trem. Não. Minha antipatia não é produto de minha falta de dinheiro. Pelo contrário, essa condição muitas vezes me libertou. Tenho raiva dos planos, das perspectivas, das possibilidades e oportunidades irrefutáveis. Gosto mesmo é de ficar sozinho.

Perdi o último trem, noites atrás. Consegui um ônibus passando quase vazio, dentro dele apenas o motorista velho, o cobrador mal-humorado e sonolento e três passageiros, aos quais não prestei a mínima atenção. Fiquei sem destino por um tempo, perambulando dentro daquela lata, que balançava e ruía por cima dos buracos do asfalto. Desci na avenida no começo da madrugada, com os poucos reais que me sobravam no bolso, e procurei por um bar aberto onde pudesse beber uma cerveja e sentar, fumando meus últimos cigarros do maço. O dono do bar era um veado magro, que ficava atrás do balcão pequeno, abrindo garrafas, contando dinheiro e mal dizendo em sussurros os clientes que não vão embora. Obviamente não ficou nada feliz quando me viu entrando e pedindo por cinco, uma cerveja que custava seis reais.

Bebi às pressas e me joguei de lá. Andei pelas calçadas onde outros bares acumulavam bêbados, patricinhas e fumantes do lado de fora. Todos pareciam tão felizes, que tive raiva de suas felicidades, de suas juventudes e belezas. Ninguém tinha nada à me dizer e por instantes, me concedi o prazer de minha própria desagradável companhia, por completo. Comprei uma garrafa de cerveja e subi a rua até os bares desaparecerem as minhas costas. De volta a avenida, caminhei trôpego pela calçada larga, encarando quem viesse em minha direção. Era uma hora da manhã e ainda existia pressa nas pessoas. Sentei na praça dos fundos do museu, com minha cerveja e um livro velho, e quando ameacei levar outro cigarro aos lábios dois moleques chegaram perto e me perguntaram se, por acaso, eu não teria um pouco de maconha. Sinalizei que não e os dois lamentaram. Não desiludidos o bastante, me pediram um cigarro. Eu tinha dois cigarros no maço amarrotado e muitas horas de madrugada pela frente. Me desculpei e recusei o pedido.

Procurei a caixa de fósforo no bolso, enquanto os dois me fitavam com aqueles olhos de garotos bobos, como se me perguntassem: "Então, o que faremos agora?". No meu bolso só haviam moedas soltas, papeis e uma chave. Fui obrigado então, em nome do bom senso de gratidão a oferecer meu último cigarro para o garoto que tinha um isqueiro. Ele se iluminou quando lhe passei o maço e me acendeu o isqueiro, que fiz questão de tomar de suas mãos e acender eu próprio o meu vício.

Um bêbado, morador de rua, que gritava com os drogados do outro lado da praça, veio em nossa direção. Aos gritos, veio puxando por um pedaço de corda um pinscher esquelético, que assim como o dono não conseguia andar em linha reta. O homem era um negro velho, de cabelos e barbas brancas e dentes e olhos amarelos. Na mão trazia algo dentro de uma garrafa, que mais tarde nos disse ser "Gasolina". Ele tentou empurrar brincos e pulseiras feitas de arame para os dois garotos enquanto eu continuava lendo, tentando entender alguma coisa no meio da gritaria que o velho promovia. Nada feito. Então me levantei e me propus uma caminhada noctívaga e pouco etílica. 

Fazia frio e eu sonhava com um gole de conhaque. Me contentei em apenas pensar no calor doce que desce pela garganta e enganar o sono e a fome. Fiquei esperando, sentado em um ponto de ônibus, até que os trens voltassem a rodar e eu pudesse voltar para o que chamo de casa. Para me distrair, pensava em mulheres, em músicas velhas, em como a cidade parecia roncar de barriga pra cima, apesar de sua pompa de "cidade que não dorme". Que seja, fiquei ali sentado, acompanhando o sonambulismo megalomaníaco e cosmopolita desse lugar frio e cinza. Era engraçado para mim perceber que enquanto milhares de pessoas largadas pelo país afora sonhavam em largar tudo e se arriscar na cidade grande, eu sonhava em gritar um "Foda-se!" bem alto e abraçar a estrada.

A avenida que no início da manhã estava movimentada, agora apresentava um desfile de poucos personagens. Me levantei e andei até o portão da estação, esperando as quatro horas da manhã chegar para destrancar o cadeado. Um homem, vestindo jeans se aproximou e perguntou-me se eu sabia a que horas os trens voltariam a funcionar, lhe respondi que por volta das quatro e meia, "Eu espero!". Ele agradeceu e se afastou alguns passos, permaneceu de pé, do outro lado da calçada olhando as horas no celular e deliciando seu cigarro matinal. Não resisti e perguntei se, por acaso, ele teria algum daquele para me arrumar. Ele não respondeu, tirou um de dentro do maço, me entregou e saiu sem dizer mais nada.

Já se passavam quatro horas e infinitos minutos de espera, quando um funcionário gordo com cara de sono, abriu o portão. Desci as escadas, peguei meu bilhete, passei a catraca e me arrastei até a estação. O trem demorou alguns minutos, chegando de um ponto de luz dentro do túnel envolvido por trevas e passando rápido, golpeando o vento e freando bruscamente na estação. Os avisos sonoros gritaram, as portas se abriram, entramos eu e outros miseráveis com sono, e desmaiamos jogados nos bancos duros, na direção de nossos planos, das nossas vidas regradas. Do sono de nossos presentes até o desanimo de nossos futuros.

Não sei bem ao certo porque me lembrei disso tudo. Talvez porque nesse dia pude sentar e conversar com minha raiva. Colocar nossa relação em pratos limpos. Pude brindar a felicidade de poder tê-la. É possível que toda essa cólera, essa aversão absoluta pelo explicável, tenha me revelado a vida vagabunda e preguiçosa que gosto de ter. A felicidade que tenho em ser diferente de vocês. A graça que acho quando vejo vocês colocando suas vidas nos trilhos mais retos, nas suas poucas curvas e precipícios, como uma montanha-russa para criancinhas. Eis a razão que tenho para conseguir olhar para todos vocês e refletir que a minha vida não pode ser tão pobre assim. É a maneira que encontrei de avisar a todos vocês que eu não ligo pra quanto dinheiro eu tenho e muito menos para quanto dinheiro vocês têm. Não quero passar a vida atrás de uma mesa contando as notas. E agora tudo o que tenho para lhes dizer é que vocês parecem tão estúpidos achando que têm as coisas, quando na verdade são as coisas que os têm. Prefiro a vida assim, sem as correntes que prendem à esse padrão. Sem a coleira da moralidade e a focinheira ética que vocês próprios vestem. Prefiro essa vida pobre, de quem anda quilômetros a pé, pelo acostamento das rodovias. Prefiro a vida de quem bebe até conseguir resolver tudo na conversa ou no braço.  Prefiro a vida dos que estão loucos para vivê-la.

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