"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



quarta-feira, 10 de abril de 2013

Ou isso, ou não sei.

   No início foi indiferença. Sentimento natural, uma resposta do organismo, instinto de sobrevivência. Virei o rosto e fingi não conhecer mais nada. Fui andando e me perdendo no labirinto que minha imaginação criava. Vasculhei entre a sujeira da cidade, entre os prédios velhos, dos abandonados e pobres-diabos. Não procurava mais nada, estava apenas de mãos abertas para receber o que me confiavam. Podia sentir na boca, subindo pela garganta a vontade de escapar. Tem algo errado aqui. O que aconteceu? Criei uma personagem e como ator vagabundo que sou me coloquei por trás da máscara. De carnaval, de ferro, de palhaço. Pude ser tudo o que queria ser quando eu não era eu. Foi mais fácil. As coisas esbarravam nisso antes de chegar a mim. Eu tinha mais tempo para respirar, deixar que a personagem tomasse conta. Parecia melhor, era mais forte, mais fria.

   O coração vai desacelerando, reduzindo a marcha, pisando na embreagem e estacionando. Depois de um tempo pára e esfria, aos poucos vai juntando poeira, ferrugem e quando você tenta ligá-lo ele engasga, tosse e morre te deixando em uma nuvem de fumaça preta. Tudo aquilo que te fazia rir vai lentamente perdendo a graça. Como eu deveria reagir? Desde cedo pensei demais, nunca para ser intelectual, nem tanto para ser manifestante, mas por que tive tempo de sobra pra isso. Caçador de paisagens, colecionador de janelas. Tinha vontade de capturar os detalhes, como se pudesse mastigar com os olhos tudo o que via e sentir o gosto dessas coisas. E agora eu sei que o gosto desse mundo é ruim. Não falo mais das pessoas, estou me afastando delas. Não tenho muita paciência. Só penso no trabalho que tenho a fazer, no que ainda me mantém em pé. Eles não precisam de mim, sou uma fotografia, mais um rosto na tela do celular.

   Tento ver, ainda que de longe e por cima dos ombros. Eu também quero saber. Como funciona? Digo, essa vida, sabe? Qual é a razão? Me contem uma história de como usá-la. Em pouco tempo irei me desprender do conforto que tenho e encarar a vida e os dias que me batem à porta. E eu posso sentir esse dia chegando, posso sentir o planeta girando a caminho disso. Ou isso, ou não sei. Rico ou pobre, jovem ou velho, cônscio ou louco. Me mexo pouco. Tenho medo de que tudo isso me acerte em cheio, mas devo começar a andar e depois a correr pra tentar deixar para trás o padrão, fugir do imediatismo, dessa mania de velocidade e comunicação direta e constante. Afinal, estamos há tanto tempo lendo sobre o que os outros pensam e tão pouco tentando saber como nós pensamos. Neste baile, só eu uso máscara?

   Tento enxergar de longe, sem poder ouvir a música. Mas não quero julgar. Quero máscaras para imaginar a história. Quero que mintam pra mim, quero fingir acreditar. Quero alimentar outras personagens, tenho um roteiro magnífico na cabeça e preciso de coadjuvantes, de cenários e figurantes. E quando menos esperarmos, iremos acordar e ver que belo espetáculo fizemos, expondo nossas vidas, nossos conhecimentos e nossos corpos por ai. Jogando no poço sem fundo, no universo inesgotável, todo o registro de nossas atividades, as aventuras dessas pessoas fictícias que somos. Qual é o próximo assunto? Do que iremos reclamar hoje? Vocês não vêem que a vida nesse molde são anos e anos de descontentamento e reclamação? Nada é rápido o bastante, nada é bom o bastante, nada é barato o bastante. E eu corro, você corre e todo mundo lá fora já está correndo e no final estamos todos atrasados. Porque isso não pára e por mais que você insista em se colocar a frente do tempo, você é lento demais. Tudo o que fizemos foi para nos poupar tempo e veja só, seus amigos nem se lembram mais, eles ficam do seu lado desconectados do mundo físico, capturados pelo insignificante, fisgados por um anzol descartável.

   Reparei que as pessoas não se olham mais nos olhos. Ficam todas elas, umas de frente para as outras, com seus olhares vazios e desinteresses. Estão cansadas demais. Estação após estação. A ida e a volta pra casa. A desesperança de chegar sabendo que fica pouco, que em pouco tempo estará de volta, para construir o império, engraxar os sapatos e jogar um pouco de óleo nas engrenagens velhas da máquina. O monstro que alimentamos. Vamos esbarrando nas regras, tentando ser o mais próximo do que queremos e nos é permitido. E quando dizem que o mundo é para todos me arrancam o riso. E quando penso que me encaixei, eles aparecem com outro paradigma, outro modo de avaliar, mais um critério. E tudo bem, vou diminuindo o passo, preguiçosamente chegando. Mais um no meio da manada gastando oxigênio.

   Não sei se entendo. Te empurram a verdade, com a convicção mais cega e estúpida e fazem questão de te ver engolindo. E não sabem quantas colheradas de mentira puseram nesta verdade doce e grudenta. A velha mania de certeza. De outro lado está o coitadismo, a doença chamada vitimismo. Veneno para o caráter, muleta para os aleijados. Os covardes que não se levantam. Olho para os dois lados e atravesso a rua. Não quero nem mesmo que me vejam passar. Não tenho mais a capacidade de tolerar os especuladores, bajuladores, os pseudo-intelectuais, os idolatras. Vão todos para o inferno! Não gritem nos meus ouvidos o que vocês pensam da vida. Não venham me dizer como as coisas devem funcionar. Não pensem que escolheram um caminho melhor e muito menos tentem me colocar nele. Não sei e não quero mais saber o que vai acontecer. Não me importa.

   De mim sei pouco. Tenho receio de me descobrir e de me apresentar. Vou ser o que precisar, o ator que a cena pedir. Só quero meu papel e a minha fala e que venham os palcos, as garrafas, as mulheres. De qualquer modo, tudo o que tenho não foi feito por mim. Todo o pouco que tenho foi dado, trocado, comprado, não é meu, é tão emprestado quanto meu corpo, meus ossos. Chamo de meu este instante, essa arrumação de palavras, conjunção de significados e mistura de percepções. Os retratos que os sentidos fazem, o sentido que os retratos fazem, traduzidos pelas mãos. É o pouco que posso compartilhar. Como homem, sou o que o futuro me der. O que meus iguais me permitem e meus diferentes não podem evitar. Avesso à propriedade, ao apego, ao materialismo. Acumulador de teorias e pontos de vista. Do contra. Alternador de opiniões. Sou o que fui e o que serei.

   A vontade de saber, de descobrir, encaixar, tudo isso me consome. O desejo de aguentar, de segurar um pouco mais, esperar, tudo isso me levanta. Meus olhos se fecham e se abrem, dia após dia, sem que eu saiba realmente onde estou, o que represento, qual minha importância e o que realmente devo fazer com o tempo que me resta. Vou pedindo carona, vivendo do que vem, tendo o que me cabe, levando o que posso.  Correndo dos dentes careados da cidade, pulando os buracos da calçada. Esse sou eu, sendo o que criei, escrevendo o que me vem. Mais um detento desta geração. Outro espectador voraz, outro cliente, outro ouvinte. Apenas outro. Outro.

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