"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



domingo, 2 de janeiro de 2011

Get out...

- O que há de errado contigo? - Ela lhe perguntou - O que mais você quer, porra? Quer que eu finja que eu não sei o que você faz?
- Não tenho o que lhe esconder, só não preciso te mostrar. O que você acaba vendo não é meu problema. Só não vou ser hipócrita dizendo que não quero mais nada, que estou satisfeito com tudo isso. O que você pensa que existe entre nós, guria?

Ela agora encara seu rosto mal barbeado e inexpressivo, cerrando os dentes e piscando compulsivamente os olhos, borrando de leve o contorno delineado em preto, provocando uma vermelhidão irritada em suas escleras e uma dilatação instantânea de suas pupilas.

- Guria? Você não se enxerga mesmo! - Ela responde em um suspiro de indignação - Age igual a um menino. Um menino mimado. Pensa que pode ir atrás do mundo e voltar correndo pra um abraço quando as coisas que você quer não acontecem? Você é um moleque!

Ela tinha razão, pelo menos um pouco, afinal era o que ele vinha praticando há algum tempo; a busca desenfreada pelas outras alternativas convenientes da vida e do mundo. Ele acreditava que navegar era mesmo preciso e que ancorar-se em um só porto, por mais tranquilo e confortável que pudesse ser, era um desperdício de tempo e vontade. Ele havia ponderado que o seu desprendimento não era uma necessidade, apenas um caminho natural que foi sendo traçado. Não precisava ir muito longe, nem abrir estradas e não o fez para enfrentar algo ou alguém, o fez apenas pra descobrir até onde iria chegar o seu desbravamento quase 'bandeirante'.

- Não devo e, na verdade, nem conseguiria tirar sua razão. Não me preocupo com isso, nem com o fato de parecer infantil...
- 'Parecer' não! Você é infantil! - Ela interrompe, quase atropelando os dentes com a língua na tentativa de atingi-lo com uma expressão de efeito - Eu só queria ter você de um jeito simples e normal como a maioria das pessoas fazem, mas você é um menino, como eu já disse, que larga os seus brinquedos correndo, para ir comer um doce ou jogar bola. Mas eu não, entendeu? Eu não vou ser seu brinquedo te esperando no quarto, jogada no meio da bagunça que é a sua vida! Tá me ouvindo?
- Tô sim...
- Então olha pra mim quando eu falo com você! Chega de ser criança. Hoje eu quero tentar falar com um homem!
- Falar? Você já ultrapassou há muito tempo o tom e volume de uma fala com essa sua histeria. Quer que eu seja seu? Como pretende fazer isso? Vai me amarrar na sua cama? Não sei se consigo aguentar isso, não sei se consigo ser só de você, ou só de qualquer outra.

Agora um fraquejo toma conta do rosto dela, invadindo a boca entreaberta e indecisa, as narinas mais abertas do que de costume, as olheiras emoldurando seus olhos castanhos subitamente desistentes e indiferentes, contrastando com os movimentos, aparentemente, involuntários e quase eufóricos de suas sobrancelhas. Ele não demonstra nenhum sentimento, nunca aprendera à fazer rodeios para dizer a verdade, quando esta fosse necessária. Limitava-se à engoli-la quando julgava o momento inadequado ou a verdade crua e demasiada de mal gosto.

- Escuta, doce. Eu gosto de você, mas...
- Não me chama mais assim. - Ela fala como se tivesse engasgado-se com a frase - Por favor!
- ...Eu gosto de você mas... Você tem os seus planos e eu não tenho os meus. Fico feliz por você ter essa habilidade de organizar sua vida, mas pra mim isso é difícil, é diferente. Não tenho como tentar fazer tudo do jeito que for melhor pra você ou pra nós, não agora. Tudo tá acontecendo muito rápido.
- Você está tentando justificar seu comodismo, seu conformismo. Você espera que eu aceite você saindo por ai, com aqueles bêbados que andam ao seu redor e com aquelas putinhas que se esfregam em você só porque sua música toca na rádio e quando você voltar, se você voltar, eu estar aqui presa pela realização dos seus sonhos e a desistência dos meus?
- Eu não espero nada! Você não precisa aceitar nada, muito menos fingir que não viu e não sabe. Não te prendo aqui! O que lhe prende é a sua vontade de ter comigo o que você arquiteta pra você. Mas eu não sou um projeto, doce... Eu sou uma pessoa, uma realidade, uma vida que esbarra em outras, todo santo dia. Não é preciso ser um gênio pra saber que eu vou me interessar por outras mulheres, também não é preciso ser um padre pra tentar me convencer que isto é errado e imoral. Nada disso tem relação alguma com meus amigos ou quem vai nos shows, se as coisas deram certo pra mim eu preciso aproveita-las, pois não sei quanto mais elas vão durar.

Ela não diz mais nenhuma palavra, tira a chave do apartamento de dentro do bolso de sua jaqueta jeans e entrega-lhe, vai até o quarto e pega sua bolsa, recolhe dois ou três livros da estante, alguns cd's e sai, batendo a porta às suas costas. Desaparece no corredor do prédio, desaparece do labirinto confuso e enigmático da rotina que a nova vida de rockstar dele se tornou. Desaparece até mesmo das poucas músicas que ele compôs pensando nela. Desaparece levando seu cheiro de perfume não tão caro, levando seu gosto de não tão suficiente. Desaparece nas primeiras horas dessa nova década.

Um comentário:

Juliana disse...

A graça de ler "77" é imaginar até onde as crônicas fazem parte da vida, ou até onde a vida faz parte das crônicas. É colocar-se na cabeça do personagem e entendê-lo. Curiosamente, consigo entender os dois lados da história, quase sempre. E nunca sei qual lado escolher!