"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



terça-feira, 31 de julho de 2012

A sete palmos.


   Como definir um sentimento? Dizendo? Escrevendo? Com gestos? Na minha cabeça isso não faz sentido. Quem provaria a autenticidade dessas palavras ditas, escritas ou interpretadas?
Qual é a importância de saber o que é verdade e o que não é? O importante deveria ser o sentir, não provar se é real. Às vezes, mentiras são verdades, melhores conduzidas, melhores adaptadas.
Verdade é uma maldição, uma filosofia criada por diplomatas bem criados, bons maridos e cidadãos, ávidos para foder, cafajestes e adúlteros, comedores de esposas sem-vergonha. Verdade foi criada para foder os homens, quem fala a verdade se fode e não me falem sobre a honra da sinceridade. A honra da sinceridade é a maior mentira já inventada, esqueçam a gloriosa hipocrisia escondida por trás de seus dentes brilhantes. Continuem criando e vivendo suas mentiras, elas vão dizer quem você é, pois uma mentira contada muitas vezes se torna verdade.

   Eu vejo-a entrar, com seus cabelos vermelhos, pegando fogo. Vestida em um azul celeste simples. Sua pele alva, refletindo uma luz ofuscante, as mesmas mãos pequenas, de criança, as unhas bem feitas e pintadas, como sempre, em um esmalte claro. Por um instante, espero que ela não me veja sozinho, sentado no balcão. Espero que ela desista, que procure e veja um miserável de costas e vá embora.
Escondo o rosto, dou outro gole seco na cerveja quente, mas é inevitável não vê-la chegar. É irresistível o movimento de suas pernas, suas coxas insinuantes sob o vestido quase curto. Finalmente ela me nota, com um sorriso discreto de Monalisa no rosto, caminha em meio aos lobos, tão famintos por ela quanto eu. Eles a devoram com os olhos, podem sentir o gosto de sua pele ou de seu seio na língua.
Ela não se desfaz, continua. Sinto meu coração batendo na velocidades dos seus passos, lembro-me de como adoro o formato de seus pés e de como eles ficam lindos de qualquer modo. Escalo seu corpo, percorro milimetricamente cada detalhe. “Ela é um anjo”, sussurro comigo mesmo. Nesse momento, a cerveja rasga minha garganta, como se tivesse a faringe sendo corroída por soda caustica.

-Você está diferente...
-Achei que você não viria.
-Você me ligou, não ligou? Porque não viria?

Porque talvez eu não valha seu tempo? Porque fui ou continuo sendo um filho-da-puta? É claro que ela viria, sempre gostou de me ver miserável, sempre gostou de ser a Madre Theresa cuidando de pobres diabos.

-Você está certa, não há motivos pra não nos vermos, casualmente.
-Casualmente? Escuta, querido... nós... Nós não somos amigos, pode ser que nunca conseguiremos ser.
-Não estou te pedindo nada, estou? Muito menos amizade.

Amizade... Pro inferno com a amizade! Ela ainda brinca comigo, mesmo depois de tanto tempo, desde a ultima vez que a vi, ostentando seu sorriso diabólico.

-Demorei? Está a muito tempo me esperando?
-Dois anos... Dois anos e uns vinte e cinco minutos.
-Não começa. Já falamos sobre isso, milhares de vezes, nós sabemos o que acontece quando levamos isso adiante.
-Nós sabemos? A gente não sabe de porra nenhuma! Nunca sabemos o que acontece.
-Seja sincero, diga a verdade pelo menos hoje.
-Verdade? Não sei o que isso significa. Minha vida é feita de mentiras. Amor de mentira, amigos de mentira,  trabalho de mentira.
-Você continua sendo o mesmo paranoico, doente.
-É, eu continuo sim! Um fodido de um doente! É o que eu sou!
-Cala a boca! Sério, o que tem feito?

“Dissimular”:
1. Fingir que não vê, não ouve ou não sente.
2. Suprimir a aparência de (o que se quer ocultar)
3. Deixar passar; fazer vista grossa sobre.

Galinha falsa. É a mesma... Uma galinha dissimulada. Muda de assunto como muda de calcinha. Como uma prostituta barata, que muda da negociação para os gemidos em um piscar de olhos, e muda dos gemidos para a cobrança mais rápido ainda, quando sua meia hora chega ao fim.

-Não tenho feito nada, digo... Nada além do habitual. O mesmo trabalho, as mesmas dívidas. Só os bares mudam.
-Os bares e as mulheres que você se mete.
-As mulheres não fazem diferença, são todas iguais, mudam os nomes, os números, o preço.
-Você deveria se cuidar, parar de fumar, beber menos, arrumar uma boa pessoa...
-Ahh vá se foder! Você se acha melhor? Você superou melhor o que aconteceu? Você continua ridícula por trás dessa máscara, desse batom... Vou fumar um cigarro lá fora, vem.

Viro e sinto-me apunhalado. Ela não está melhor que eu! Não pode estar. Passamos pela mesma estrada... Ela não pode estar melhor.

-Tá com frio?
-Sua grosseria é inacreditável... Inacre...
-Tá bom, esquece.
-Esquece? Esquece? Já esqueci... Esqueci há dois anos!
-Esqueceu o caralho! Você não esqueceu porra nenhuma! Você tentou, fugiu, tentou se distrair com outro, mas não esqueceu nada!

Outro? Dois anos. Quantos? Quem? Não aguentaria saber... Mas sinto que me confortaria... Sem nomes, apenas números. Quantos? Será que ela gemeu com eles como gemia para mim?

-Você tá certo. Me distraí. Precisei saber o que existia além de você. Precisava de alguém pra me fazer te esquecer. Esquecer as suas mentiras bem contadas.
-Certo... O que você precisava era dar.
-Também! Já que tocou nesse assunto, me diz, quantas foram?
-Quantas o que?
-Quantas? Quantas você comeu quando tava comigo? Quantas putinhas abriram as perninhas?

Devo falar das duas amigas dela? Faria diferença duas conhecidas entre quinze ou vinte outras desconhecidas?

-Quinze. Foram quinze.
-Eu não acredito! Quinze cadelas... E eu no seu jogo, acreditando no seu amor de merda.

Onde devemos encaixar o amor nessa história? Porque sempre alguém toca nisso? Como se mostra o amor? O que acaba com o amor?

-O que eu sentia por você estava acima da verdade e da mentira.
-Sentia?
-Sentia... Sinto. O que é o certo e o que é o errado?
-Não me importa mais. Na verdade, não preciso mais perder tempo com essa pergunta.
-Você cobra meu amor, mas enterra o seu. Questiona minha sinceridade, mas omite a sua. Se não é sincera, seja corajosa, diga que não me ama.

Ela abre os lábios, se preparando, mas engole as palavras e esquiva. Procura o que dizer, no meio dessa guerra. Sabe que tem mais a dizer do que a cobrar.

-Ainda tá com ele?
-Sim... Na verdade faz um ano. Um ano e três meses.
-Você o ama?
-Não é da sua conta. Sei que gosta de se sentir miserável. Peça a outra pessoa para te humilhar.
-Você faz o que fazia comigo? Chupa ele da mesma forma? Faz a mesma cara de puta?
-Você é podre!

Eu sou podre... Ela é um anjo. Ela é feita de pureza infinita. A cadela mais pura. No meio da maior sacanagem, ela parecia ser uma santa. Uma santa gemendo, gritando... Pedindo, implorando para ser fodida. Uma putinha com asas e uma auréola brilhante. Gritando “Me bate!”. E depois de tudo acendia um cigarro, não tinha o hábito de fumar diariamente, mas deitada nua, encostada no meu peito, acendia dois cigarros e me passava um. Sentia o gosto da sua boca, do seu hálito. Eu transava com outras, mas eram insignificantes, inotáveis. Ela não. Ela era minha vida!

-Você é um anjo.
-Esquece... Eu vou embora.
-Você não precisa ir agora.
-Disse que não voltaria tarde.
-Entendi... O bonitinho te deu horas pra voltar. Disse pra ele aonde viria?
-Disse que iria beber com uma amiga que terminou com o namorado.
-Quem diria... Mentindo para o homem que você ama. Verdade não vale nada.
-Não menti pra ele...
-Não? Não me lembro de ser mulher, sua amiga eu sei que não sou, sem contar que a última pessoa com quem eu terminei, foi você.
-É diferente. Ele tem ciúme de você.
-Ciúme? Seria trágico se não fosse cômico.
-Quer saber? Eu sinto pena de você. Você se acha melhor que ele, mas eu achei nele o que procurei em você. Ele me ouve, não importa o que eu diga. Você é baixo, sente inveja. Tenho certeza que imagina ele me comendo. Tenho certeza que imagina eu arranhando as costas dele e não a sua, chupando ele e não você. Você pensa em mim, sendo comida por ele, mas olhando pra você.

Desgraçada. Ela entra na minha cabeça. Ela diz como se soubesse exatamente tudo o que eu penso. Como se o que eu imaginasse fosse tão nítido que ela pudesse ver escrito no meu rosto.
Ela disse o que no fundo era o que eu queria ouvir. Ela disse calma, sem raiva, sem ressentimento. Ela foi sincera. Ela descobriu o que eu pensava o tempo todo. Aquele maldito. Aquele filho-da-puta sugando seus mamilos, lambendo seu corpo. Aquele filho da puta e ela... Putinha santa... Se entregando,sendo chupada.

-Você tem razão.
-Enfim, você está mostrando o que é.
-Mostrando o que eu sou? Você sabe o que eu sou! Do que está falando? Agora não me conhece? Eu sou o podre, o maldito! O filho-da-puta envenenado com a tua saliva. E você? O que você é? Você continua sendo a mesma cadela que era na minha cama? Pede pra ele te bater também? Pra gozar em você?

Eu implorei, pedi a Jesus Cristo. Quis que ela morresse, ou que eu morresse. Eu quis sentir sua boca na minha. Sua língua. Meus dentes no seu pescoço. Minhas mãos no meio de suas pernas.
Eu a amava. Amava o gosto da sua pele. O cheiro. Ela se derramava, escorria como uma vela acesa em minhas mãos. Ela é minha droga, minha dependência, minha abstinência. Ela é a minha morte, meu câncer. A santa putinha que me lambia. A mulher da minha vida.

-Continuo. Faço tudo o que fazia contigo e mais um pouco. Mais do que você imagina. Sou a mesma cadela, a mesma putinha que você comia.
-Eu amo você.
-Cala a boca. Ama o caralho!
-Eu am...
-Cala a boca, porra! Não estraga! Nosso destino é discutir, nunca mais se entender. Não podemos mais ter o que já tivemos. Não estraga.
-Tudo bem. Tá tudo certo.

A aurora começava a brilhar, por trás das nuvens nascia um lindo dia e as pessoas começavam a sair para trabalhar, comprar jornal ou cigarros, tomar café da manhã nas padarias. Eu estava lá, na frente do mesmo bar. Acorrentado. Olhando para ela. Seu vestido, um palmo acima dos joelhos, sua coxa rígida. Suas mãos de criança, esmalte claro nas unhas. Seus cabelos caindo nos ombros frágeis. Seus olhos de anjo, roubando o azul do céu. Eu não controlo mais o que faço, não estou no controle.

-O que está fazendo?
-Como?
-Meu Deus, o que você está fazen...
-Desculpe, não foi minha... Desculpe, mas eu...

Minhas mãos... Estavam no rosto dela. Quando percebi estavam estacionadas no seu rosto. Porque me afastei? Porque ela não se moveu? O que eu estou fazendo? O que está me chamando? A boca dela não se move, seus olhos se fixaram. A boca dela. De novo, o gosto da boca dela, sua textura, colidindo com a minha, arrancando faíscas. Ela é a minha droga.

Ela diz...

-Não, por favor. Eu não vou aguentar. Acabou! Só... Esquece. Por favor... Por favor...

Ela deu três passos pra trás, se virou devagar e sumiu. Se misturou na aurora, se misturou com o resto. Eu fiquei. Dou o último trago, sento na sarjeta. Ela sumiu, junto com o amor. O amor. Enterrado, a sete palmos. O amor de mentira, a vida de mentira, a mulher de mentira. É tudo mentira! Porque verdade foi feita para as boas pessoas. Isso não é amor. Isso é putaria, putaria da boa. Isso não é verdade. É a nossa melhor mentira, a mentira contada milhares de vezes. A mentira de um miserável e uma puta santa. A mentira que definiu o que nos tornamos: impossíveis um para o outro. Nós descobrimos. Impossíveis... Nós descobrimos.

Um comentário:

Juliana disse...

O que ocorre é que, com frequência, esquecemos qual é a nossa verdade e qual é a verdade criada para os outros.
As nossas verdades são aquelas que conhecemos bem, mas que ficam trancadas em algum lugar esquecido da mente, porque encará-las a todo momento dói; as verdades para os outros são aquelas que suportamos diariamente, os sorrisos de 'bom dia', os 'obrigada' e 'por favor', os desejos de feliz aniversário. Não que sejam todos falsos, mas nem sempre são tão sentidos assim.
Nada pra se preocupar. Pensar sobre verdades e mentiras é questionar a nossa essência. E isso nem sempre é bom.