"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



terça-feira, 16 de novembro de 2010

alto-mar

Acontece que, por trás de uma nuvem néon, destaca-se uma parte de sol. Então vocês decidiram sair para dar uma volta, ela queria comprar alguma coisa, qualquer coisa que lhe fizesse gastar o resto do seu salário. Você só pensava em andar um pouco, fugir dessas paredes.
Ela logo se interessava por algo enquanto você a seguia pelos corredores de barracas, desviando vez ou outra de alguma criança correndo, esbarrando vez outra em algumas outras pessoas que resmungavam xingamentos pelo esbarro ou pela fumaça do cigarro enquanto você faz que não ouviu.
Você continua seguindo os passos dela por entre a praça lotada, mantendo uma distância que lhe oferece imunidade ao seu perfume mas por outro lado, aquela visão dela andando aos pulos, de estande à estande, experimentando doces e brincos baratos, vez ou outra colocando um anel no dedo anelar, parece queimar-lhe os olhos. O cheiro do lugar vai se transformando em uma feijoada de aromas: incenso, pipoca, amendoim, tinta óleo e pastéis, tudo isso misturado à maresia.
Você não morre de amores por ela, quase nunca presta atenção no que ela diz embora ouça, com um perceptível desprezo, o que ela tem à dizer sempre que ela coloca-se a sua frente. Ela gosta de você por isso. Não mostra nem surpresa quando ela parece saber do que fala, nem admiração quando ela começa seu monólogo à respeito da sua predilecção por Ella Fitzgerald à Billie Holiday. Você dá de ombros, afinal não morre de amores por ela.
Ela tem dois ou três anos à menos, estuda fisioterapia e estagia em uma clínica por meio período. Você não sabe se tem ou não ciúme de quando ela sai com os colegas do curso para beber, de quando aparece com um vestido ou decote um pouco mais curto, de quando troca mensagens na internet ou celular com outros rapazes, no final ela não é sua e, mesmo que quisesse, seria difícil fazê-la aceitar um compromisso à sua maneira.
Você gosta do sexo que fazem, de sua infantilidade. Gosta de quando ela geme baixinho, quando passa os dedos pelos seus cabelos. Às vezes, se flagra pensando no calor no meio dos seios dela, lembra-se dela saindo do banheiro só de roupa íntima e com a toalha enrolada na cabeça e, agora sim, se permite um sorriso de nostalgia. Ela continua andando em pulos à sua frente, agora com um algodão-doce nas mãos, olhando para trás e dando gargalhadas de menina, colocando punhados do doce na ponta da língua e deixando o açúcar dissolver por si só.
Ela gosta de quando você deixa a barba por fazer e não precisa dizer que ela gosta do seu jeito. Ela planeja um futuro para vocês dois, você não gosta mas não a impede de sonhar, você sempre deixa que ela fale, embora às vezes não responda e limite-se apenas a fazer suas conhecidas expressões manuais ou faciais. Ela não sente falta de uma resposta na maior parte do tempo, afinal ela quer mesmo que você escute, não que opine ou aconselhe e na verdade ela também não morre de amores por você.
Ela pára por um momento diante das escadas no final da praça e observa o contorno da orla da praia iluminada pelas luzes de postes, carros e prédios. Já é começo de noite, apenas um filete laranja de nuvem permanece no céu azul indigo. Você continua mantendo distância, agora parado, com o final de outro cigarro cuspindo restos de fumaça entre os dedos, observando-a de costas.
O vestido de flores e os cabelos acastanhados balançam na sinfonia de ventos que vêem do mar trazendo pequenas ondas de espuma e salpicando sua pele. Uma escuna passa devagar, bem perto, com o brilho de centenas de pequenas lâmpadas amarelas e vermelhas, ela se distrai com as luzes da embarcação e não percebe a sua aproximação.
Ela cruza os braços, esfregando-os com as mãos numa tentativa de diminuir um pouco o leve frio que o oceano traz. Você tira seu casaco e coloca sobre os ombros dela, assustando-a um pouco e acaba perguntando a si mesmo se aguentaria aqueles sorrisos dela, de lábios fechados e com o lado direito mais puxado que o esquerdo, espremendo de leve os olhos cor de mel que brilham com as luzes da escuna. Acaba perguntando-se quão é necessário ou se é mesmo preciso amar alguém para ficar junto dela. Talvez não tanto, talvez não muito, talvez não seja necessário ou preciso morrer de amores, pois este é seu jeito de amar.

Um comentário:

Unknown disse...

E quem foi que disse que você não a ama? São tantos os detalhes, tantas as percepções, que chego a duvidar do seu personagem, ou do que ele acha que acha. Talvez amar seja isso, talvez o seu jeito de amar seja esse.


Adorei a "feijoada de aromas".

Abraço,André.