"Não me roube a solidão sem antes me oferecer verdadeira companhia."


Friedrich Nietzsche



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A love supreme...

Ela senta-se ao meu lado, encostando seu braço no meu enquanto vira as páginas do livro de Caio Fernando Abreu que acabara de comprar, chamado Fragmentos. Por alguns instantes consigo ouvir o som que o resto do mundo faz quando ela se cala, mas em um piscar de olhos está ela falando novamente sobre algum conto chamado "Os sapatinhos vermelhos" ou "Paris não é uma festa".

Tanto faz...

Ontem meu time empatou e isso me importa mais agora do que as semelhanças e diferenças com Cecilia Meireles ou Gabriel Garcia Marquez, mas é disso que ela gosta. Torcemos para times diferentes, times rivais, pra ser mais claro. Ela interrompe sua retórica apenas para falar do absurdo que era o meu mal-humor por causa de um jogo, ainda falando sem tirar os olhos do livro que ainda cheira à papel novo.

Pra variar, eu não respondo. Levanto do sofá, desvio-me das pernas dela e vou até a cozinha. Um copo americano, quatro ou cinco goles de café, nenhuma colher de açúcar e vou para a janela da sala. Escolho um cigarro no maço, levo-o até os lábios e acendo-o. E ofereço-a a magnífica oportunidade de falar mal das minhas escolhas e atitudes, ainda sem me olhar.

"Ah...Se ela soubesse."

Não faço questão de discutir sobre qual dos dois tem razão, acredito que essas acusações são traços definitivos e irrefreáveis na personalidade dela, além de uma característica bem feminina. Vou até o rádio aumento o volume com a sorte de pegar "A love supreme" do Coltrane à tempo e viro-me e, de frente para ela, encaro-a como sempre faço e cada vez mais transformo isto em um hábito pós acusação. Ela me olha por cima do livro, com aquele sorriso de incredulidade, que rápido amarela-se e se transforma em uma indiferença rápida e quase discreta. Nunca se deixa perder tempo demais me olhando, obriga-se à distrair-se com qualquer coisa por perto.

De um verso para outro, seus lábios e dentes acabam cedendo à língua e cordas vocais, e depois de alguns momentos de sol e silêncio, ela traz de volta uma tempestade de palavras, agora largando o livro e voltando-se directamente para mim.

Quase sempre é a mesma história: Eu bebo demais, estou fumando muito, quase nunca falo sobre o que ela quer falar, que essas coisas acabam tirando o sono dela e que ela não sabe se eu sou a mesma pessoa que conheceu. Mas como poderia ser?
Engraçado é que ela não grita, como a maioria das outras costuma fazer. E logo põe-se de volta à sua serenidade comum e encantadora, rindo com seus dentes certos e brancos. Acaba logo com sua tempestade de verão.

No intervalo de três cigarros, vem até a janela e me abraça pelas costas, com as duas mãos no peito e com a cabeça encostada bem atrás do meu coração. Fica calada por cinco ou seis segundos.

- Eu te odeio, sabia? - Ela me pergunta num misto de riso e interrogação. - Eu te odeio.
- Sei - repliquei depressa. - foi a primeira coisa que soube quando te conheci!

Trago-a para minha frente deixando-a debruçada na janela e estendo-lhe o cigarro, que ela traga uma vez e me devolve. Eu penso que estaria disposto a morrer por ela à qualquer momento e por qualquer motivo, qualquer um. Mas também penso em como é bom estar vivo pra sentir o cheiro dos seus cabelos. Encosto o queixo no ombro dela que se retrai de leve com o espetar dos fios de barba.

- Eu também te odeio! - respondi devagar. - Odeio ainda mais  não conseguir te odiar mais ainda, Doce.

Um comentário:

Anna Laura disse...

Passo sempre aqui. Sou fã dos teus textos. Abraços.